Mauro Ferreira no G1

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quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Iara se suja com sangue das canções ao interpretar 'Drama' de Bethânia

Resenha de show
Título: Iara Rennó interpreta Drama - Anjo exterminado
Artista: Iara Rennó (em foto de Rodrigo Goffredo)
Local: Arena do Espaço Sesc Copacabana (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 4 de novembro de 2014
Cotação: * * * *

É difícil encarar em cena um álbum gravado por Maria Bethânia, cantora dona do dom de dominar palcos e mentes. Mesmo sem cacife para ambicionar o trono da rainha dos raios e trovoadas, Iara Rennó se saiu muito bem na proposta de interpretar em cena Drama - Anjo exterminado (Philips, 1972), primeiro disco de estúdio feito por Bethânia após o registro ao vivo do definidor show Rosa dos ventos (1971). Na introdução do show que estreou no Rio de Janeiro (RJ) na noite de ontem, 4 de novembro de 2014, Iara pareceu baixar com força no terreiro de Bethânia quando, munida de chocalho, de costas para a plateia que se acomodava nas cadeiras da arena do Espaço Sesc Copacabana, cantou o ponto afro-brasileiro que abre o álbum. Na sequência, abordagem insossa de Esse cara (Caetano Veloso, 1972), sem drama e também sem sensualidade, diluiu a força desse início promissor. Só que o santo de Iara Rennó é forte como sua personalidade artística. À medida que a apresentação foi evoluindo, a cantora e compositora paulistana foi encontrando o tom indie da interpretação de Drama. Segura, Rennó emendou a capella o samba-canção Bom dia, tristeza (Adoniran Barbosa e Vinicius de Moraes, 1957) - ausente do disco, mas presente na discografia de Bethânia - em outro samba-canção, Bom dia (Herivelto Martins e Aldo Cabral). Natural, tal licença poética exemplifica a intenção da artista de desconstruir o Drama de Bethânia para fazê-lo à sua moda - no toque contemporâneo do power trio formado por Bruno Di Lullo (baixo e pocket piano), Felipe Fernandes (guitarra e pocket piano) e Leo Monteiro (bateria) - sem demolir os alicerces que sustentam o repertório e sem deixar de sujar as mãos no sangue que escorre de canções como Anjo exterminado (Jards Macalé e Waly Salomão, 1972) e o fado Maldição (Alfredo Duarte e Armando Vieira Pinto, 1950), reavivado por Rennó entre dissonâncias, ruídos e distorções em ponto alto do show. A inserção no roteiro de duas músicas lançadas por Rennó em seu álbum Iara (Joia Moderna, 2013) - Arroz sem feijão e Miligramas, ambas de autoria da artista - se ajustaram perfeitamente ao clima quente do cancioneiro de Drama, sendo que Miligramas funcionou, ao fim do show, como comentário irônico a respeito desse fogo que molda os atos de Bethânia. Com Iara, o samba Volta por cima (Paulo Vanzolini, 1962) virou rock sem perda das ênfases e da atitude. Já a orquestração de O circo (Batatinha, 1972) se equilibrou na marcação firme e quase fanfarrona da bateria de Leo Monteiro enquanto Iansã (Gilberto Gil e Caetano Veloso, 1972) ganhou arranjo que pareceu incorporar forças ocultas, embora a interpretação arrebatadora e recente de Alice Caymmi baixe na memória. Sem drama, mas com fraca mise-en-scène, Iara sentou numa cadeira para cantar, ao lado dos espectadores, Estácio, Holly Estácio (Luiz Melodia, 1972), samba atualmente nem tão associado a Bethânia, embora tenha sido lançado pela intérprete em Drama. Sucesso da cantora carioca Linda Rodrigues (1919 - 1997), o samba-canção Lama (Paulo Marques e Alice Chaves, 1952) foi outra prova de que Iara teve perfeito entendimento do Drama de Bethânia a ponto de inserir músicas inexistentes no disco sem jamais sair do tom. No fim, quando deita na arena do Sesc Copacabana ao longo da interpretação de Drama (Caetano Veloso, 1972), a cantora preparou o encerramento de seu ato - fechado com a ironia de Miligramas (Iara Rennó, 2013) - com gestos que elevaram o poder de sedução do show. Suja com o sangue das canções, a voz de Iara Rennó nunca mentiu...

Um comentário:

Mauro Ferreira disse...

♪ É difícil encarar em cena um álbum gravado por Maria Bethânia, cantora dona do dom de dominar palcos e mentes. Mesmo sem cacife para ambicionar o trono da rainha dos raios e trovoadas, Iara Rennó se saiu muito bem na proposta de interpretar em cena Drama - Anjo exterminado (Philips, 1972), primeiro disco de estúdio feito por Bethânia após o registro ao vivo do definidor show Rosa dos ventos (1971). Na introdução do show que estreou no Rio de Janeiro (RJ) na noite de ontem, 4 de novembro de 2014, Iara pareceu baixar com força no terreiro de Bethânia quando, munida de chocalho, de costas para a plateia que se acomodava nas cadeiras da arena do Espaço Sesc Copacabana, cantou o ponto afro-brasileiro que abre o álbum. Na sequência, abordagem insossa de Esse cara (Caetano Veloso, 1972), sem drama e também sem sensualidade, diluiu a força desse início promissor. Só que o santo de Iara Rennó é forte como sua personalidade artística. À medida que a apresentação foi evoluindo, a cantora e compositora paulistana foi encontrando o tom indie da interpretação de Drama. Segura, Rennó emendou a capella o samba-canção Bom dia, tristeza (Adoniran Barbosa e Vinicius de Moraes, 1957) - ausente do disco, mas presente na discografia de Bethânia - em outro samba-canção, Bom dia (Herivelto Martins e Aldo Cabral). Natural, tal licença poética exemplifica a intenção da artista de desconstruir o Drama de Bethânia para fazê-lo à sua moda - no toque contemporâneo do power trio formado por Bruno Di Lullo (baixo e pocket piano), Felipe Fernandes (guitarra e pocket piano) e Leo Monteiro (bateria) - sem demolir os alicerces que sustentam o repertório e sem deixar de sujar as mãos no sangue que escorre de canções como Anjo exterminado (Jards Macalé e Waly Salomão, 1972) e o fado Maldição (Alfredo Duarte e Armando Vieira Pinto, 1950), reavivado por Rennó entre dissonâncias, ruídos e distorções em ponto alto do show. A inserção no roteiro de duas músicas lançadas por Rennó em seu álbum Iara (Joia Moderna, 2013) - Arroz sem feijão e Miligramas, ambas de autoria da artista - se ajustaram perfeitamente ao clima quente do cancioneiro de Drama, sendo que Miligramas funcionou, ao fim do show, como comentário irônico a respeito desse fogo que molda os atos de Bethânia. Com Iara, o samba Volta por cima (Paulo Vanzolini, 1962) virou rock sem perda das ênfases e da atitude. Já a orquestração de O circo (Batatinha, 1972) se equilibrou na marcação firme e quase fanfarrona da bateria de Leo Monteiro enquanto Iansã (Gilberto Gil e Caetano Veloso, 1972) ganhou arranjo que pareceu incorporar forças ocultas, embora a interpretação arrebatadora e recente de Alice Caymmi baixe na memória. Sem drama, mas com fraca mise-en-scène, Iara sentou numa cadeira para cantar, ao lado dos espectadores, Estácio, Holly Estácio (Luiz Melodia, 1972), samba atualmente nem tão associado a Bethânia, embora tenha sido lançado pela intérprete em Drama. Sucesso da cantora paulista Linda Batista (1919 - 1988), o samba-canção Lama (Paulo Marques e Alice Chaves, 1952) foi outra prova de que Iara teve perfeito entendimento do Drama de Bethânia a ponto de inserir músicas inexistentes no disco sem jamais sair do tom. No fim, quando deita na arena do Sesc Copacabana ao longo da interpretação de Drama (Caetano Veloso, 1972), a cantora preparou o encerramento de seu ato - fechado com a ironia de Miligramas (Iara Rennó, 2013) - com gestos que elevaram o poder de sedução do show. Suja com o sangue das canções, a voz de Iara Rennó nunca mentiu...