Mauro Ferreira no G1

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domingo, 23 de agosto de 2015

Como 'Lady Day', Lilian Valeska dá show e legitima musical de tom narrativo

Resenha de musical
Título: A vida de Billie Holiday - Amargo fruto
Texto: Jau Sant'Angelo e Ticiana Studart
Direção: Ticiana Studart
Direção musical: Marcelo Alonso Neves
Elenco: Lilian Valeska, Vilma Melo e Milton Filho
Cotação: * * *
 Espetáculo m cartaz de quinta-feira a sábado no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro (RJ), até 27 de setembro de 2015. Temporadas agendadas na Arena Carioca Dicró, em 3 e 4 de outubro de 2015, e na Arena Carioca Fernando Torres, em 10 e 11 de outubro de 2015

Nunca houve um musical encenado no Rio de Janeiro (RJ) com Lilian Valeska no elenco em que essa atriz e cantora carioca não tenha sobressaído em cena quando soltava seu vozeirão de espírito soul, lapidado em igreja presbiteriana da Penha, bairro do subúrbio carioca. Diplomada na escola da música negra-americana, a voz de Lilian tem alma que, aliada à sua técnica, a tornou uma grande cantora. Seus dotes vocais há muito credenciavam a artista para o posto de protagonista de um musical. Papel no qual Lilian dá show ao cantar o repertório da cantora norte-americana Billie Holliday (1915 - 1959) em Amargo fruto, musical recém-chegado à cena carioca, em temporada no Teatro Carlos Gomes até 27 de setembro, no ano em que o universo pop celebra o centenário de nascimento de Lady Day. Ao cantar standards do repertório da diva do jazz como God bless the child (Billie Holiday e Arthur Herzog Jr., 1942), Lilian acerta o tom e surpreende até mesmo quem já conhece seu honroso histórico nos palcos cariocas porque o repertório de Lady Day exige inflexões e emissões vocais específicas. Sem cair no erro de imitar a inimitável cantora, Lilian põe sua voz e sua alma nesse repertório de grandes canções, afinada com sofisticada direção musical de Marcelo Alonso Neves, hábil ao arregimentar para a cena um quarteto de baixo (Berval Moraes), bateria (Emile Saubole), saxofone (Gabriel Gabriel) e piano (Rodrigo de Marsillac) capaz de evocar a íntima atmosfera jazzística dos night-clubs e boates em que Billie se apresentou em seu início de carreira. Habituada a brilhar em músicas pautadas pela intensidade dramática, Lilian também surpreende em cena ao ostentar apurado senso rítmico em números de clima mais suave como Night and day (Cole Porter, 1932) - usada no roteiro para exemplificar o sucesso de Billie em sua primeira turnê pela Europa - e All of me (Gerald Marks e Seymour Simons, 1931), número em que brilha também a atriz Vilma Melo no papel da dançarina que tenta roubar a cena de Billie. Vilma, a propósito, está muito bem nas diversas personagens que encarna ao longo do espetáculo, incluindo a mãe de Billie e a camareira que acode a estrela em suas crises de abstinência e nas adversidades existenciais. Mas Lilian Valeska - vista em cena em imagem extraída de vídeo da TV Globo - é senhora absoluta da cena nos números musicais. E são eles, os números musicais, que legitimam este musical de tom narrativo. O texto de Jau Sant'Angelo - assinado com Ticiana Studart, diretora do espetáculo - prioriza à narração em detrimento da ação. Há, sim, dramatizações de passagens importantes da vida de Billie, mas a trajetória trágica dessa cantora de temperamento tão forte quanto suas interpretações é essencialmente contada de forma narrativa. Cabe ao elenco - completado por Milton Filho, ator que se reveza nos papéis dos homens (quase todos cafajestes) que ajudaram Lady Day a se afundar no universo das drogas - narrar em ordem cronológica a vida de Billie Holiday em relatos secos, feitos com a objetividade de um texto jornalístico. A opção pela narração impede que Amargo fruto tenha dramaticidade condizente com a existência da artista. Contudo, a direção de Ticiana Studart faz com que o espetáculo seja conduzido com fluência. O drama, por vezes, está mais nas músicas cantadas por Lilian - como a que batiza o espetáculo na tradução em português, Strange fruit (Abel Meeropol, 1939) - do que no texto em si. Aliás, funciona bem o recurso de traduzir para o português e recitar os versos poéticos de Strange fruit, poema que denuncia o racismo que violentou negros norte-americanos na primeira metade do século XX, antes de Lilian cantar a música com a letra original em inglês. Distante do padrão Broadway, Amargo fruto é musical sustentado pelo talento vocal de Lilian Valeska. Não é fácil cantar músicas como Lady sings the blues (Herbie Nichols e Billie Holiday, 1956), Speak low (Kurt Weill e Ogden Nash, 1943) e Summertime (George Gershwin e DuBose Heyward, 1935) - número que fecha o roteiro musical - com propriedade e sem sair do tom que remete à atmosfera de Billie. Os arranjos estão dentro do clima, mas se desprendem dos originais. Sem procurar mimetizar Billie Holiday em cena, Lilian Valeska honra o genial repertório reunido para compor o roteiro do musical. A grande cantora é bem maior do que o espetáculo em si e vale o ingresso para ver Amargo fruto.

3 comentários:

Mauro Ferreira disse...

♪ Nunca houve um musical encenado no Rio de Janeiro (RJ) com Lilian Valeska no elenco em que essa atriz e cantora carioca não tenha sobressaído em cena quando soltava seu vozeirão de espírito soul, lapidado em igreja presbiteriana da Penha, bairro do subúrbio carioca. Diplomada na escola da música negra-americana, a voz de Lilian tem alma que, aliada à sua técnica, a tornou uma grande cantora. Seus dotes vocais há muito credenciavam a artista para o posto de protagonista de um musical. Papel no qual Lilian dá show ao cantar o repertório da cantora norte-americana Billie Holliday (1915 - 1959) em Amargo fruto, musical recém-chegado à cena carioca, em temporada no Teatro Carlos Gomes até 27 de setembro, no ano em que o universo pop celebra o centenário de nascimento de Lady Day. Ao cantar standards do repertório da diva do jazz como God bless the child (Billie Holiday e Arthur Herzog Jr., 1942), Lilian acerta o tom e surpreende até mesmo quem já conhece seu honroso histórico nos palcos cariocas porque o repertório de Lady Day exige inflexões e emissões vocais específicas. Sem cair no erro de imitar a inimitável cantora, Lilian põe sua voz e sua alma nesse repertório de grandes canções, afinada com sofisticada direção musical de Marcelo Alonso Neves, hábil ao arregimentar para a cena um quarteto de baixo (Berval Moraes), bateria (Emile Saubole), saxofone (Gabriel Gabriel) e piano (Rodrigo de Marsillac) capaz de evocar a íntima atmosfera jazzística dos night-clubs e boates em que Billie se apresentou em seu início de carreira. Habituada a brilhar em músicas pautadas pela intensidade dramática, Lilian também surpreende em cena ao ostentar apurado senso rítmico em números de clima mais suave como Night and day (Cole Porter, 1932) - usada no roteiro para exemplificar o sucesso de Billie em sua primeira turnê pela Europa - e All of me (Gerald Marks e Seymour Simons, 1931), número em que brilha também a atriz Vilma Melo no papel da dançarina que tenta roubar a cena de Billie. Vilma, a propósito, está muito bem nas diversas personagens que encarna ao longo do espetáculo, incluindo a mãe de Billie e a camareira que acode a estrela em suas crises de abstinência e nas adversidades existenciais. Mas Lilian Valeska - vista em cena em imagem extraída de vídeo da TV Globo - é senhora absoluta da cena nos números musicais. E são eles, os números musicais, que legitimam este musical de tom narrativo.

Mauro Ferreira disse...

O texto de Jau Sant'Angelo - assinado com Ticiana Studart, diretora do espetáculo - prioriza à narração em detrimento da ação. Há, sim, dramatizações de passagens importantes da vida de Billie, mas a trajetória trágica dessa cantora de temperamento tão forte quanto suas interpretações é essencialmente contada de forma narrativa. Cabe ao elenco - completado por Milton Filho, ator que se reveza nos papéis dos homens (quase todos cafajestes) que ajudaram Lady Day a se afundar no universo das drogas - narrar em ordem cronológica a vida de Billie Holiday em relatos secos, feitos com a objetividade de um texto jornalístico. A opção pela narração impede que Amargo fruto tenha dramaticidade condizente com a existência da artista. Contudo, a direção de Ticiana Studart faz com que o espetáculo seja conduzido com fluência. O drama, por vezes, está mais nas músicas cantadas por Lilian - como a que batiza o espetáculo na tradução em português, Strange fruit (Abel Meeropol, 1939) - do que no texto em si. Aliás, funciona bem o recurso de traduzir para o português e recitar os versos poéticos de Strange fruit, poema que denuncia o racismo que violentou negros norte-americanos na primeira metade do século XX, antes de Lilian cantar a música com a letra original em inglês. Distante do padrão Broadway, Amargo fruto é musical sustentado pelo talento vocal de Lilian Valeska. Não é fácil cantar músicas como Lady sings the blues (Herbie Nichols e Billie Holiday, 1956), Speak low (Kurt Weill e Ogden Nash, 1943) e Summertime (George Gershwin e DuBose Heyward, 1935) - número que fecha o roteiro musical - com propriedade e sem sair do tom que remete à atmosfera de Billie. Os arranjos estão dentro do clima, mas se desprendem dos originais. Sem procurar mimetizar Billie Holiday em cena, Lilian Valeska honra o genial repertório reunido para compor o roteiro do musical. A grande cantora é bem maior do que o espetáculo em si e vale o ingresso para ver Amargo fruto.

Ida Vicenzia disse...

Depois deste comentário, é desnecessário qualquer crítica a respeito de Amargo Fruto. Parabéns, Mauro Ferreira!
Ida Vicenzia