Mauro Ferreira no G1

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domingo, 17 de agosto de 2014

Jurema reinventa baianidade nagô ao seguir a rota universal de 'Mestiça'

Resenha de CD
Título: Mestiça
Artista: Jurema
Gravadora: Saravá Discos
Cotação: * * * * *

Segundo álbum de Jurema, Mestiça é grata surpresa por se embrenhar na floresta musical afro-baiana com criatividade, ignorando ramificações óbvias e os clichês desse rico universo sonoro que a artista baiana recicla e reinventa com frescor neste disco editado pelo selo Saravá Discos, de Zeca Baleiro. Jurema é Jurema Paes, cantora e compositora natural de Salvador (BA) que também é historiadora como seu pai, Fábio Paes. Mas nem por isso Mestiça soa como um disco arqueológico. Há, sim, toda uma forte carga ancestral no repertório, mas tal ancestralidade é abordada de forma contemporânea, mixando vozes e percussões com violões e sintetizadores. Nesse sentido, faz toda diferença a direção artística do compositor, pianista e produtor musical Marcos Vaz, parceiro de Jurema no primeiro CD da cantora, Batuque de canoa (Independente, 2002), disco editado há 12 anos. Vaz é o produtor de Mestiça, em função coadjuvada por Cássio Calazans. A combinação de vozes e sintetizador (um korg ms-20) orquestrada por Vaz em Ogum de ronda (Tiganá Santana), faixa que abre o disco, já dá a pista das trilhas percorridas por Jurema com inventividade no CD Mestiça. Em Imbuzeiro, fragmento da Fantasia leiga para um rio seco (Elomar Figueira Melo, 1981), a luz vem do entrelaçar da percussão corporal da moçambicana Lena Braune - mentora do arranjo - com a voz afinada de Jurema e com o tom primitivista dos cantos de Chico César e Tiganá Santana, convidados da faixa. Chico reaparece no afro-samba indígena Nkongo (Tiganá Santana), faixa que exemplifica a habilidade dos produtores do disco de dar belo tratamento contemporâneo a repertório que evoca a ancestralidade da mãe África, gestora da música do planeta (um remix percussivo de Nkongo encerra o CD). A África também está entranhada em Le mali chez la carte invisible, canção em francês - conduzida pelo toque dos violões do arranjador Cássio Calazans - da qual o compositor baiano Tiganá Santana é autor e convidado. Mestiça, aliás, tem também o mérito de expor a promissora produção autoral de Tiganá, compositor também de Elizabeth Noon, canção em inglês de clima etéreo. Em Não pedi (Roberto Mendes e Nizaldo Costa) e em Fulorá (Fábio Paes e Enrique Oliveira), Jurema põe a chula do Recôncavo Baiano na roda com a pulsação própria dos arranjos de Marcos Vaz e Léo Caribé Martins (na primeira) e Cássio Calazans (na segunda). Já Água na chuva (Cássio Calazans e Alexandre Processo) cai com os efeitos extraídos por Marcos Vaz de um sintetizador Vermona Mono Lancelet. Disco cuja excelência vem muito dos arranjos, todos inusitados, Mestiça reitera a maestria do maestro Letieres Leite - orquestrador dos metais do Maxixe nagô (Marcos Vaz e Zeca Baleiro) - e extrapola a fronteira afro-baiana, seguindo com a guitarra de Cássio Calazans e as maracas de Pedro La Colina uma rota universal que conduz o álbum ao universo mexicano de La caña (Patrício Hidalgo). Essa rota passa por estrada italiana, de onde vem a pegada western spaghetti imprimida na Chula no terreiro (1979), recriação fabulosa da composição do baiano sertanista Elomar Figueira de Mello. Baleiro une sua voz ao suave canto agudo de Jurema nesta faixa que arremata a travessia de Mestiça com criatividade que aponta novos caminhos na já exaurida floresta afro-baiana. Jurema recria a baianidade nagô na rota universal de Mestiça.

3 comentários:

Mauro Ferreira disse...

Segundo álbum de Jurema, Mestiça é grata surpresa por se embrenhar na floresta musical afro-baiana com criatividade, ignorando ramificações óbvias e os clichês desse rico universo sonoro que a artista baiana recicla e reinventa com frescor neste disco editado pelo selo Saravá Discos, de Zeca Baleiro. Jurema é Jurema Paes, cantora e compositora natural de Salvador (BA) que também é historiadora como seu pai, Fábio Paes. Mas nem por isso Mestiça soa como um disco arqueológico. Há, sim, toda uma forte carga ancestral no repertório, mas tal ancestralidade é abordada de forma contemporânea, mixando vozes e percussões com violões e sintetizadores. Nesse sentido, faz toda diferença a direção artística do compositor, pianista e produtor musical Marcos Vaz, parceiro de Jurema no primeiro CD da cantora, Batuque de canoa (Independente, 2002), disco editado há 12 anos. Vaz é o produtor de Mestiça, em função coadjuvada por Cássio Calazans. A combinação de vozes e sintetizador (um korg ms-20) orquestrada por Vaz em Ogum de ronda (Tiganá Santana), faixa que abre o disco, já dá a pista das trilhas percorridas por Jurema com inventividade no CD Mestiça. Em Imbuzeiro, fragmento da Fantasia leiga para um rio seco (Elomar Figueira Melo, 1981), a luz vem do entrelaçar da percussão corporal da moçambicana Lena Braune - mentora do arranjo - com a voz afinada de Jurema e com o tom primitivista dos cantos de Chico César e Tiganá Santana, convidados da faixa. Chico reaparece no samba indígena Nkongo (Tiganá Santana), faixa que exemplifica a habilidade dos produtores do disco de dar belo tratamento contemporâneo a esse repertório que evoca a ancestralidade da mãe África, gestora da música do planeta (um remix percussivo de Nkongo encerra o CD). A África também está entranhada em Le mali chez la carte invisible, canção em francês - conduzida pelo toque dos violões do arranjador Cássio Calazans - da qual o compositor baiano Tiganá Santana é autor e convidado. Mestiça, aliás, tem também o mérito de expor a promissora produção autoral de Tiganá, compositor também de Elizabeth Noon, canção em inglês de clima etéreo. Em Não pedi (Roberto Mendes e Nizaldo Costa) e em Fulorá (Fábio Paes e Enrique Oliveira), Jurema põe a chula do Recôncavo Baiano na roda com a pulsação própria dos arranjos de Marcos Vaz e Léo Caribé Martins (na primeira) e Cássio Calazans (na segunda). Já Água na chuva (Cássio Calazans e Alexandre Processo) cai com os efeitos extraídos por Marcos Vaz de um sintetizador Vermona Mono Lancelet. Disco cuja excelência vem muito dos arranjos, todos inusitados, Mestiça reitera a maestria do maestro Letieres Leite - orquestrador dos metais do Maxixe nagô (Marcos Vaz e Zeca Baleiro) - e extrapola a fronteira afro-baiana, seguindo com a guitarra de Cássio Calazans e as maracas de Pedro La Colina uma rota universal que conduz o álbum ao universo mexicano de La caña (Patrício Hidalgo). Essa rota passa por estrada italiana, de onde vem a pegada western spaghetti imprimida na Chula no terreiro (1979), recriação fabulosa da composição do baiano sertanista Elomar Figueira de Mello. Baleiro une sua voz ao suave canto agudo de Jurema nesta faixa que arremata a travessia de Mestiça com criatividade que aponta novos caminhos na já exaurida floresta afro-baiana. Jurema recria a baianidade nagô na rota universal de Mestiça.

lurian disse...

Pra mim um dos melhores discos da do ano. As músicas do Tiganá são muito boas, os arranjos na medida; a participação do Chico César na afro Nkongo está de arrepiar! além do que sinto a presença de influencias de Diana Pequeno e Roze, duas cantoras dessa Bahia que muita gente desconhece.

Guilherme disse...

Um dos melhores do ano, sem dúvida. Produção maravilhosa, sensível e moderna. Obrigado por divulgar, Mauro. Se não fosse pelo blog não teria ouvido.