Mauro Ferreira no G1

Aviso aos navegantes: desde 6 de julho de 2016, o jornalista Mauro Ferreira atualiza diariamente uma coluna sobre o mercado fonográfico brasileiro no portal G1. Clique aqui para acessar a coluna. O endereço é http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/


quarta-feira, 8 de junho de 2016

Com sabor de vidro e corte, canto de Garin consagra intérprete em 'Rabisco'

Resenha de show
Título: Rabisco
Artista: Laila Garin (em foto de Mauro Ferreira)
Local: Teatro do Fashion Mall (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 7 de junho de 2016
Cotação: * * * * *

Agora Laila Garin já é uma estrela dos palcos brasileiros. Enquanto arrasta pequenas multidões para a plateia de Gota d'água [A seco], musical em cartaz na cidade do Rio de Janeiro (RJ), a atriz e cantora baiana permanece paralelamente em cena desde 2015 com Rabisco, show que voltou aos palcos cariocas na noite de ontem, 7 de junho de 2016, em consagradora apresentação no Teatro Fashion Mall (para onde retornará na próxima terça-feira, 14 de junho). Estrela dos musicais de teatro, a atriz se expõe em Rabisco somente como cantora. Uma grande intérprete, capaz de fazer expressivas e renovadas abordagens de músicas que já ganharam vozes como as de Elis Regina (1945 - 1982) - cantora que Garin encarnou no espetáculo Elis, a musical (2013 / 2014) -  e Maria Bethânia. Rabisco é um show. Mas a teatralidade está permanentemente em cena, no canto dramático de Garin, no corpo que também se porta como instrumento da canção e até mesmo em boa parte dos arranjos criados e tocados por A Roda, o afiado trio - formado por Marcelo Müller (baixo), Rick de La Torre (bateria) e Ricco Viana (guitarra e violão) - que divide o palco com a cantora. Eventuais desencontros entre cantora e os ótimos músicos na apresentação de 7 de junho de 2016 se revelaram insignificantes diante da grandeza do show. Aos 38 anos, Garin se impõe como cantora de alma, corpo, coração e uma voz capaz de galgar altos degraus agudos na escala musical, como evidenciado na interpretação de Se eu quiser falar com Deus (Gilberto Gil, 1980). Uma intérprete com sangue nas veias em cena indie povoada por cantoras anêmicas. À flor da pele, o canto de Laila tem o sabor de vidro e corte de que fala San Vicente (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1972), música que fecha o show em medley que a linka com Conversando no bar (Nas asas da Panair) (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1974), outra incursão pelo repertório da soberana Elis. Garin canta sucessos da MPB, e músicas mais recentes associadas à linguagem dessa música (já não tão) popular brasileira, mas a pulsação é a do rock, como Rabisco mostra de cara quando Garin entra em cena para cantar O que será? (À flor da pele) (Chico Buarque, 1976), música que gravou em 2015 para Leve Chico, ainda inédito tributo de artistas da nova geração ao compositor Chico Buarque. Mais vocacionado para o palco do que para os estúdios, o canto arretado da baiana impõe sotaque nordestino em Não me deixe (Juliano Holanda) - tema gravado por Garin para a trilha sonora da série Amorteamo (TV Globo, 2015) - sem aprisionar a intérprete em qualquer território musical. Garin voa em cena. Enredada no clima denso do toque d'A Roda em Na primeira manhã (Alceu Valença, 1980), a intérprete desce aos porões da solidão para fazer um canto demente, lento, que dissocia o lamento blue de Garin da antológica abordagem da música de Alceu feita por Maria Bethânia no álbum A beira e o mar (Philips, 1984). É com essa mesma personalidade que Garin faz Canteiros (Raimundo Fagner a partir de poema de Cecília Meireles, 1973) florescer com intensidade e com inserção de trecho recitado da letra de Lion man (Criolo, 2011), música do repertório do rapper paulistano Criolo. Tal intensidade é bisada na sentida interpretação de Não me arrependo (Caetano Veloso, 2006), uma das músicas mais belas do irregular repertório de  (Universal Music, 2006), álbum que renovou o som e o público de Caetano Veloso há dez anos. Em Não me arrependo, o toque seco e bem marcado da bateria de Rick de La Torre parece rasgar a pele, remexendo na fratura exposta na canção de amor desfeito. Na sequência, Sonhos pintados de azul (Dani Black, 2015) dá tom mais leve e luminoso ao show enquanto Juntando os cacos (Moyseis Marques, 2015) cai no samba em esquema noise. Garin já havia gravado o samba, cuja letra evoca as construções buarquianas, em EP lançado pelo cantor e compositor Moyseis Marques em 2015. Já Flor da ilusão - música que o compositor Renato Luciano já havia registrado em canto de tom sertanejo em gravação feita em dupla com Léo Pinheiro e posta no YouTube em 2014 - desabrocha no toque minimalista do arranjo d'A Roda. Contudo, Rabisco reitera que o canto de Garin cresce mais no teatro da canção. É com dramaticidade - e gestual teatral que reitera o corpo como instrumento da canção - que a intérprete senta no palco para dar voz à balada Aguenta coração (Prêntice, Ed Wilson e Paulo Sérgio Valle, 1990). Ao reviver este grande sucesso popular do cantor José Augusto, Garin leva a mão ao peito e atua no limite do excesso, mergulhando em seguida no mesmo universo kitsch que enche Banho de piscina (João Falcão, 2016) de ironias não muito finas, mas sedutoras. Fora das águas da música dita brega, Garin marcha em direção à França - fazendo valer a ascendência paterna - para cantar título do cancioneiro autoral do grupo francês Noir Désir (1980 - 2010), Marlène (Bertrand Cantat, Denis Barthe, Frédéric Vidalenc, Jean-Paul Roy e Serge Teysott-Gay, 1992). A batida marcial do arranjo se alinha com a marcha das pernas da cantora neste número teatral feito em clima de cabaré e em sintonia temática com a música seguinte, L'accordéoniste (Michel Emer, 1940), canção de amor em tempos de guerra, imortalizada na voz da cantora francesa Edith Piaf (1915 - 1963) e entoada por Garin em Rabisco com fluência e com o toque rascante do contrabaixo acústico de Marcelo Müller. Em que pese o francês perfeito, a cantora lança mão de versão em português de Ne me quitte pas (1959), escrita por Adriana Falcão com poesia e fidelidade ao doído sentido original dos versos da canção mais famosa do compositor belga Jacques Brel (1929 - 1978). Com o toque minimalista da guitarra de Ricco Viana, Garin dá outro show de interpretação teatral, expondo no canto em carne viva a dor do abandono. Enfim, a voz de Garin pode até soar festiva, como no bis encerrado com a percussiva Vamo batucá (Renato Luciano, 2016), tema da trilha sonora do musical Auê (2016), mas é quando sangra, com sabor de vidro e corte, que o canto de Laila Garin se agiganta e faz a festa dos admiradores de intérpretes que cantam com a voz, o corpo e a alma. Rabisco (ex)põe em cena cantora de assinatura própria, impressa a ferro e fogo no ótimo show.

7 comentários:

Mauro Ferreira disse...

♪ Agora Laila Garin já é uma estrela dos palcos brasileiros. Enquanto arrasta pequenas multidões para a plateia de Gota d'água [A seco], musical em cartaz na cidade do Rio de Janeiro (RJ), a atriz e cantora baiana permanece paralelamente em cena desde 2015 com Rabisco, show que voltou aos palcos cariocas na noite de ontem, 7 de junho de 2016, em consagradora apresentação no Teatro Fashion Mall (para onde retornará na próxima terça-feira, 14 de junho). Estrela dos musicais de teatro, a atriz se expõe em Rabisco somente como cantora. Uma grande intérprete, capaz de fazer expressivas e renovadas abordagens de músicas que já ganharam vozes como as de Elis Regina (1945 - 1982) - cantora que Garin encarnou no espetáculo Elis, a musical (2013 / 2014) - e Maria Bethânia. Rabisco é um show. Mas a teatralidade está permanentemente em cena, no canto dramático de Garin, no corpo que também se porta como instrumento da canção e até mesmo em boa parte dos arranjos criados e tocados por A Roda, o afiado trio - formado por Marcelo Müller (baixo), Rick de La Torre (bateria) e Ricco Viana (guitarra e violão) - que divide o palco com a cantora. Eventuais desencontros entre cantora e músicos na apresentação de 7 de junho de 2016 se revelaram insignificantes diante da grandeza do show. Aos 38 anos, Garin se impõe como cantora de alma, corpo, coração e uma voz capaz de galgar degraus agudos na escala musical, como evidenciado na interpretação de Se eu quiser falar com Deus (Gilberto Gil, 1980). Uma intérprete com sangue nas veias em cena indie povoada por cantoras anêmicas. À flor da pele, o canto de Laila tem o sabor de vidro e corte de que fala San Vicente (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1972), música que fecha o show em medley que a linka com Conversando no bar (Nas asas da Panair) (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1974), outra incursão pelo repertório da soberana Elis. Garin canta sucessos da MPB, e músicas mais recentes associadas à linguagem dessa música (já não tão) popular brasileira, mas a pulsação é a do rock, como Rabisco mostra de cara quando Garin entra em cena para cantar O que será? (À flor da pele) (Chico Buarque, 1976), música que gravou em 2015 para Leve Chico, ainda inédito tributo de artistas da nova geração ao compositor Chico Buarque. Mais vocacionado para o palco do que para os estúdios, o canto arretado da baiana impõe sotaque nordestino em Não me deixe (Juliano Holanda) - tema gravado por Garin para a trilha sonora da série Amorteamo (TV Globo, 2015) - sem aprisionar a intérprete em qualquer território musical. Garin voa em cena. Enredada no clima denso do toque d'A Roda em Na primeira manhã (Alceu Valença, 1980), a intérprete desce aos porões da solidão para fazer um canto demente, lento, que dissocia o lamento blue de Garin da antológica abordagem da música de Alceu feita por Maria Bethânia no álbum A beira e o mar (Philips, 1984). É com essa mesma personalidade que Garin faz Canteiros (Raimundo Fagner a partir de poema de Cecília Meireles, 1973) florescer com intensidade e com inserção de trecho recitado da letra de Lion man (Criolo, 2011), música do repertório do rapper paulistano Criolo. Tal intensidade é bisada na sentida interpretação de Não me arrependo (Caetano Veloso, 2006), uma das músicas mais bonitas de Cê (Philips, 2006), o álbum que renovou o som e o público de Caetano Veloso há dez anos. Em Não me arrependo, o toque seco e bem marcado da bateria de Rick de La Torre parece rasgar a pele, remexendo na fratura exposta na canção de amor desfeito. Na sequência, Sonhos pintados de azul (Dani Black, 2015) dá tom mais leve e luminoso ao show enquanto Juntando os cacos (Moyseis Marques, 2015) cai no samba em esquema noise. Garin já havia gravado o samba, cuja letra evoca as construções buarquianas, em EP lançado pelo cantor e compositor Moyseis Marques em 2015. Já Flor da ilusão - música que o compositor Renato Luciano já havia registrado em canto de tom sertanejo em gravação feita em dupla com Léo Pinheiro e posta no YouTube em 2014 - desabrocha no toque minimalista do arranjo d'A Roda.

Mauro Ferreira disse...

Contudo, Rabisco reitera que o canto de Garin cresce mais no teatro da canção. É com dramaticidade - e gestual teatral que reitera o corpo como instrumento da canção - que a intérprete senta no palco para dar voz à balada Aguenta coração (Prêntice, Ed Wilson e Paulo Sérgio Valle, 1990). Ao reviver este grande sucesso popular do cantor José Augusto, Garin leva a mão ao peito e atua no limite do excesso, mergulhando em seguida no mesmo universo kitsch que enche Banho de piscina (João Falcão, 2016) de ironias não muito finas, mas sedutoras. Fora das águas da música dita brega, Garin marcha em direção à França - fazendo valer a ascendência paterna - para cantar título do cancioneiro autoral do grupo francês Noir Désir (1980 - 2010), Marlène (Bertrand Cantat, Denis Barthe, Frédéric Vidalenc, Jean-Paul Roy e Serge Teysott-Gay, 1992). A batida marcial do arranjo se alinha com a marcha das pernas da cantora neste número teatral feito em clima de cabaré e em sintonia temática com a música seguinte, L'accordéoniste (Michel Emer, 1940), canção de amor em tempos de guerra, imortalizada na voz da cantora francesa Edith Piaf (1915 - 1963) e entoada por Garin em Rabisco com fluência e com o toque rascante do contrabaixo acústico de Marcelo Müller. Em que pese o francês perfeito, a cantora lança mão de versão em português de Ne me quitte pas (1959), escrita por Adriana Falcão com poesia e fidelidade ao doído sentido original dos versos da canção mais famosa do compositor belga Jacques Brel (1929 - 1978). Com o toque minimalista da guitarra de Ricco Viana, Garin dá outro show de interpretação teatral, expondo no canto em carne viva a dor do abandono. Enfim, a voz de Garin pode até soar festiva, como no bis encerrado com a percussiva Vamo batucá (Renato Luciano, 2016), tema da trilha sonora do musical Auê (2016), mas é quando sangra, com sabor de vidro e corte, que o canto de Laila Garin se agiganta e faz a festa dos admiradores de intérpretes que cantam com a voz, o corpo e a alma. Rabisco (ex)põe em cena cantora de assinatura própria.

Henrique disse...

Garin é mesmo gigante. A versão dela para "Uma Canção Desnaturada" no filme do Chico dói no fundo da alma.

Pedro Progresso disse...

to curioso pra ver o musical e agora o show. adorei Garín no filme do Chico!
ps Mauro, o Cê saiu pela Universal, não foi? acho q ja nao tinha mais Philips. abs!

andrea dutra disse...

Que bom saber que agora vc também escreve sobre shows que não estão ligados a disco. Da última vez que perguntei, vc disse que nao escrevia, né? ótimo saber. bj

Mauro Ferreira disse...

Andrea, os discos são o foco do Notas Musicais desde sempre. Não dou notas de shows, a menos que seja gravação de DVD. Mas, sim, há, sempre houve e sempre haverá resenhas de shows de intérpretes que me motivam a sair de casa para ver um show deles. Abs, MauroF

ADEMAR AMANCIO disse...

Ter vivido a Elis deve ter ajudado.Afinal a Elis foi a grande cantora-atriz de seu tempo.