Mauro Ferreira no G1

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domingo, 28 de dezembro de 2014

Biografia desvenda (quase) todo o mistério sobre a vida de Assis Valente

Resenha de livro
Título: Quem samba tem alegria - A vida e o tempo de Assis Valente
Autor: Gonçalo Junior
Editora: Civilização Brasileira
Cotação: * * * 1/2

No texto escrito para a orelha da mais alentada biografia do compositor baiano Assis Valente (19 de março de 1908 - 11 de março de 1958), assinada pelo jornalista Gonçalo Junior e recém-lançada pela editora Civilização Brasileira, o compositor carioca Nei Lopes exalta o fato de o livro revelar, enfim, o mistério do autor do samba Camisa listrada, sucesso de Carmen Miranda (1909 - 1955) em 1937. Mas o fato é que, embora a biografia resulte confiável ao montar amplo painel da vida e do tempo de José de Assis Valente, seu autor se esquiva de investigar a suposta reprimida homossexualidade do compositor, a rigor efetivamente nunca comprovada. Se fosse atestada, a suposta homossexualidade talvez pudesse explicar as sucessivas sumidas de Assis e as crises depressivas, mencionadas por Gonçalo Junior ao longo das 658 páginas de Quem samba tem alegria - A vida e o tempo de Assis Valente. Sem ao menos cogitar e discutir essa hipótese (enfaticamente rechaçada pelo autor na única breve menção sobre o tema, feita à página 506), Gonçalo Junior tira um pouco do brilho de um livro que - omissão à parte - deve ser lido por quem se interessa pela produção musical brasileira dos anos 1930, década áurea para o compositor baiano. Assis teve 155 músicas gravadas entre 1932 e 1958 (ano em que o compositor ingeriu mistura letal de guaraná com veneno de rato, consumando, enfim, o suicídio que tentara outras sete vezes), mas foi nos anos 1930 que emplacou seus maiores sucessos. Sua escalada foi iniciada em 1932 com a gravação do samba Tem francesa no morro por Aracy Cortes (1904 - 1985), cantora carioca dos teatros de revista que logo seria superada por uma portuguesa de nascimento, mas de alma brasileira, que teria sua voz propagada pelas ondas do rádio que se fortalecia no Brasil de então e que foi o principal veículo para a exposição do cancioneiro de Assis Valente. Carmen Miranda foi a principal intérprete dos sambas e marchas de Assis, que chegou à cidade do Rio de Janeiro (RJ) em 1928 em busca do sucesso e do reconhecimento que nunca tivera na Bahia, seu Estado natal. A biografia de Gonçalo Junior, aliás, é brilhante ao reconstituir o nascimento de Assis, confrontando versões e relatando fatos que apontam 1908 como o ano em que o compositor veio ao mundo (e não 1911, como sustentam outras fontes). Tenha nascido no Campo da Pólvora (em Salvador - BA) ou em Patioba (cidade do interior da Bahia), o fato é que Assis foi separado da mãe pobre e solteira, por volta dos seis anos, para ser criado por família de dentista rico na cidade baiana de Alagoinhas. Nessa casa, amargou trabalhos pesados enquanto obteve os primeiros conhecimentos da profissão de protético que iria sustentar seus luxos no Rio de Janeiro. A grande maioria das 658 páginas de Quem samba tem alegria reconta a vida de Assis na competitiva cena musical do Rio, mostrando o compositor dividido entre o deslumbre do meio artístico e o ofício sem glamour de protético (função na qual Assis também se destacou por esculpir cada dentadura como obra de arte). O livro traça perfil convincente de Assis, apontado como vaidoso (da aparência e da obra), generoso (gastava o que tinha e o que não tinha com amigos falsos e verdadeiros), marqueteiro (soube utilizar a mídia de sua época para se promover como compositor, para ciúme de seus colegas de ofício e geração), sagaz e por vezes arredio. Um compositor temperamental e versátil que deixou para a posteridade músicas inspiradas como a marcha natalina Boas festas (1933), o tema junino Cai, cai, balão (1933) e os sambas Alegria (1937), ...E o mundo não se acabou (1938) e Brasil pandeiro (1941), além do já mencionado Camisa listrada (grafado como Camisa listada na gravação original de 1937). Mas, como enfatiza Gonçalo Junior, o Assis que se iluminava com um comentário positivo a seu respeito nos jornais era o mesmo que se deixava encobrir pelas sombras diante de qualquer contrariedade ou crítica negativa. Tal bipolaridade o levou à depressão, potencializada pelo consumo de fartas doses de álcool e cocaína. Por sua vez, essa depressão levou Assis a ver o suicídio como a única saída para a fase crepuscular em que se viu sem dinheiro, sem o sucesso de outrora e sem amigos. Ao relatar minuciosamente essa fase, o autor valoriza Quem samba tem alegria. É fato que há eventuais imprecisões históricas no livro - como creditar somente a 1931 o sucesso de Taí (Pra você gostar de mim) (Joubert de Carvalho), marchinha lançada por Carmen Miranda em fevereiro de 1930 - e que, por vezes, Gonçalo Junior perde o foco quando se excede ao contextualizar, na cena musical da época, fatos da vida de outras personagens como, por exemplo, a chegada do cantor e compositor baiano Dorival Caymmi (1914 - 2008) ao Rio de Janeiro - assunto de várias dispensáveis páginas. Mas esses pontos negativos da narrativa jamais tiram o mérito de trabalho de fôlego. Gonçalo Junior desvenda (quase) todo o mistério sobre a vida triste do aparentemente alegre Assis Valente. Faltou apenas discutir na biografia a questão da (suposta) homossexualidade.

6 comentários:

Mauro Ferreira disse...

♪ No texto escrito para a orelha da mais alentada biografia do compositor baiano Assis Valente (19 de março de 1908 - 11 de março de 1958), assinada pelo jornalista Gonçalo Junior e recém-lançada pela editora Civilização Brasileira, o compositor carioca Nei Lopes exalta o fato de o livro revelar, enfim, o mistério do autor do samba Camisa listrada, sucesso de Carmen Miranda (1909 - 1955) em 1937. Mas o fato é que, embora a biografia resulte confiável ao montar amplo painel da vida e do tempo de José de Assis Valente, seu autor se esquiva de investigar a suposta reprimida homossexualidade do compositor, efetivamente nunca comprovada. Se fosse atestada, essa suposta homossexualidade talvez pudesse explicar as sucessivas sumidas de Assis e as crises depressivas, mencionadas por Gonçalo Junior ao longo das 658 páginas de Quem samba tem alegria - A vida e o tempo de Assis Valente. Sem ao menos levantar e discutir a hipótese, Gonçalo Junior tira um pouco do brilho de um livro que - omissão à parte - deve ser lido por quem se interessa pela produção musical brasileira dos anos 1930, década áurea para o compositor baiano. Assis teve 155 músicas gravadas entre 1932 e 1958 (ano em que o compositor ingeriu mistura letal de guaraná com veneno de rato, consumando, enfim, o suicídio que tentara outras sete vezes), mas foi nos anos 1930 que emplacou seus maiores sucessos. Sua escalada foi iniciada em 1932 com a gravação do samba Tem francesa no morro por Aracy Cortes (1904 - 1985), cantora carioca dos teatros de revista que logo seria superada por uma portuguesa de nascimento, mas de alma brasileira, que teria sua voz propagada pelas ondas do rádio que se fortalecia no Brasil de então e que foi o principal veículo para a exposição do cancioneiro de Assis Valente. Carmen Miranda foi a principal intérprete dos sambas e marchas de Assis, que chegou à cidade do Rio de Janeiro (RJ) em 1928 em busca do sucesso e do reconhecimento que nunca tivera na Bahia, seu Estado natal. A biografia de Gonçalo Junior, aliás, é brilhante ao reconstituir o nascimento de Assis, confrontando versões e relatando fatos que apontam 1908 como o ano em que o compositor veio ao mundo (e não 1911, como sustentam outras fontes). Tenha nascido no Campo da Pólvora (em Salvador - BA) ou em Patioba (cidade do interior da Bahia), o fato é que Assis foi separado da mãe pobre e solteira, por volta dos seis anos, para ser criado por família de dentista rico na cidade baiana de Alagoinhas. Nessa casa, amargou trabalhos pesados enquanto obteve os primeiros conhecimentos da profissão de protético que iria sustentar seus luxos no Rio de Janeiro. A grande maioria das 658 páginas de Quem samba tem alegria reconta a vida de Assis na competitiva cena musical do Rio, mostrando o compositor dividido entre o deslumbre do meio artístico e o ofício sem glamour de protético (função na qual Assis também se destacou por esculpir cada dentadura como obra de arte). O livro traça perfil convincente de Assis, apontado como vaidoso (da aparência e da obra), generoso (gastava o que tinha e o que não tinha com amigos falsos e verdadeiros), marqueteiro (soube utilizar a mídia de sua época para se promover como compositor, para ciúme de seus colegas de ofício e geração), sagaz e por vezes arredio. Um compositor temperamental e versátil que deixou para a posteridade músicas inspiradas como a marcha natalina Boas festas (1933), o tema junino Cai, cai, balão (1933) e os sambas Alegria (1937), ...E o mundo não se acabou (1938) e Brasil pandeiro (1941), além do já mencionado Camisa listrada (grafado como Camisa listada na gravação original de 1937).

Mauro Ferreira disse...

Mas, como enfatiza Gonçalo Junior, o Assis que se iluminava com um comentário positivo a seu respeito nos jornais era o mesmo que se deixava encobrir pelas sombras diante de qualquer contrariedade ou crítica negativa. Tal bipolaridade o levou à depressão, potencializada pelo consumo de fartas doses de álcool e cocaína. Por sua vez, essa depressão levou Assis a ver o suicídio como a única saída para a fase crepuscular em que se viu sem dinheiro, sem o sucesso de outrora e sem amigos. Ao relatar minuciosamente essa fase, o autor valoriza Quem samba tem alegria. É fato que há eventuais imprecisões históricas no livro - a mais grave é creditar a 1931 o sucesso de Taí (Pra você gostar de mim) (Joubert de Carvalho), marchinha lançada por Carmen Miranda em fevereiro de 1930 - e que, por vezes, Gonçalo Junior perde o foco quando se excede ao contextualizar, na cena musical da época, fatos da vida de outras personagens como, por exemplo, a chegada do cantor e compositor baiano Dorival Caymmi (1914 - 2008) ao Rio de Janeiro - assunto de várias dispensáveis páginas. Mas esses pontos negativos da narrativa jamais tiram o mérito de trabalho de fôlego. Gonçalo Junior desvenda (quase) todo o mistério sobre a vida triste do aparentemente alegre Assis Valente. Faltou apenas levantar na biografia a questão da suposta homossexualidade.

Gonçalo Junior disse...

Caro Mauro:
Fiquei lisonjeado com sua resenha do meu livro. Muito obrigado. Se me permite, só gostaria de fazer uma observação: eu não deixei de fora ou joguei para debaixo do tapete a suposta homossexualidade Assis, como já se comentou em uma página do Facebook. Eu simplesmente considerei, por meio meio da minha pesquisa, que tudo não passou de uma especulação criada a partir de suas letras. Nunca se provou com testemunhas ou documento (uma carta ou um bilhete ou uma nota de jornal) tal afirmação. Eu precisaria fazer um ensaio no final do livro para explicar isso e optei por não seguir esse caminho. Quanto a Taí, ela foi gravada sim em 1930, mas estourou no Carnaval de 1931. É comum acontecer assim. Um abraço e feliz 2015!

Gonçalo Junior disse...

Caro Mauro:
Fiquei lisonjeado com sua resenha do meu livro. Muito obrigado. Se me permite, só gostaria de fazer uma observação: eu não deixei de fora ou joguei para debaixo do tapete a suposta homossexualidade Assis, como já se comentou em uma página do Facebook. Eu simplesmente considerei, por meio meio da minha pesquisa, que tudo não passou de uma especulação criada a partir de suas letras. Nunca se provou com testemunhas ou documento (uma carta ou um bilhete ou uma nota de jornal) tal afirmação. Eu precisaria fazer um ensaio no final do livro para explicar isso e optei por não seguir esse caminho. Quanto a Taí, ela foi gravada sim em 1930, mas estourou no Carnaval de 1931. É comum acontecer assim. Um abraço e feliz 2015!

Mauro Ferreira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mauro Ferreira disse...

oi, Gonçalo, fico feliz que você tenha gostado da resenha. Entendo seu ponto de vista, mas defendo a ideia de que a questão da suposta homossexualidade deveria ser ao menos mencionada no livro, mesmo que desmentida. Mesmo que não tenha fundamento, essa questão sempre fica no ar quando se fala de Assis. Quanto a 'Taí', o sucesso da música se estendeu de fato ao Carnaval de 1931, mas a marcha repercutiu ao longo de 1930 e embalou a carreira de Carmen naquele ano (de todo modo, alterei esse trecho da resenha para deixar claro que a música também foi hit em 1931). Enfim, são detalhes que não desmerecem o valor da obra. Parabéns pelo livro e sucesso! Abs, MauroF