Mauro Ferreira no G1

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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

'Uma Noite em 67' chega ao DVD com extras do histórico festival da MPB

Resenha de filme em DVD
Título: Uma Noite em 67
Direção: Renato Terra e Ricardo Calil
Edição: VideoFilmes
Cotação: * * * * 1/2

Na noite de 21 de outubro de 1967, o Teatro Paramount, em São Paulo (SP), foi palco de disputa emblemática na história da música brasileira. Naquela noite, aconteceu a final do III Festival da Música Popular Brasileira, produzido e exibido pela TV Record. Defenderam músicas nessa mítica final nomes como Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu Lobo, Elis Regina (1945 - 1982), Gilberto Gil, Nana Caymmi, Roberto Carlos e Sérgio Ricardo. Time que - com exceções de Elis e Roberto - entraram em campo para cantar músicas de sua própria autoria. Os ânimos, nos bastidores e na plateia, estavam exaltados. Até porque o que estava em jogo não eram somente as primeiras colocações, mas as inovadoras ideias musicais que Caetano e Gil defendiam, espalhando a semente tropicalista que iria germinar com força naquele ano e em 1968. De um lado, o bloco mais conservador, refratário à inclusão da guitarra elétrica na MPB. De outro, a turma mais antenada - a facção jovem - que absorvia as novidades estéticas da cultura pop (leia-se Beatles) de forma antropofágica. Cenário de disputas ideológicas, a final do III Festival da Música Popular Brasileira é revivida no documentário Uma Noite em 67, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil. Sucesso de público e crítica neste ano de 2010, o filme está sendo editado em DVD com saborosos extras que incluem causos do festival não incluídos no roteiro original - contados por nomes como Caetano, Chico, Sérgio Ricardo, Marília Medalha, Ferreira Gullar e Johnny Alf (1929 - 2010) - e outras músicas defendidas na final, mas não exibidas no documentário por não terem se classificado nos primeiros lugares. Entre elas, o DVD rebobina O Cantador (Dori Caymmi e Nelson Motta - na voz de Elis), A Estrada e o Violeiro (Sidney Miller, com o compositor e Nara Leão), Bom Dia (Nana Caymmi e Gilberto Gil, com Nana), Gabriela (Francisco Fuzetti, com MPB-4) e Samba de Maria (Francis Hime e Vinicius de Moraes, com MPB-4). Apenas um número da final ficou fora do DVD, Ventania (Geraldo Vandré e Hilton Acioly), provavelmente porque o artista que a defendeu, o arisco Geraldo Vandré, não deve ter autorizado a veiculação da música e a de sua imagem no vídeo.

Extras à parte, o filme em si é cativante. A partir de entrevistas inéditas com os principais compositores envolvidos na disputa musical e ideológica, os diretores revolvem emoções, medos e inovações que deram caráter histórico àquela noite de 1967. Até o também arisco Roberto Carlos - que defendeu samba bem tradicional, Maria, Carnaval e Cinzas (Luiz Carlos Paraná), embora estivesse associado à turma jovem por conta do som das tardes dominicais que ecoava no Brasil desde 1965 - fala no filme, contando que não pôde escolher a música que ia cantar, pois já recebeu a incubência de interpretar o samba que, afinal, lhe daria a 5ª colocação na intensa final do III Festival de Música Popular. Todos os depoimentos são corroborados por imagens da noite, colhidas nos arquivos da TV Record. Além de mostrar entrevistas feitas com os artistas pelos jornalistas que cobriam o evento, o filme rebobina as apresentações das músicas que ficaram nos cinco primeiros lugares. E mostra também a lendária defesa de Beto Bom de Bola, quando o autor e intérprete da música, Sérgio Ricardo, perde a paciência com as vaias do público e arremessa seu violão contra a participativa plateia, em um gesto intempestivo que renderia manchetes, custaria a desclassificação do artista e contribuiria para alimentar o mito da noite. "Não me arrependo", garante Sérgio Ricardo com firmeza, lembrando que a plateia da era dos festivais se comportava como uma personagem, já previamente imbuída de vaiar ou aplaudir os artistas. "Era um espetáculo", admite Paulo Machado de Carvalho Filho (1924 - 2010), diretor da TV Record, o comandante do espetáculo.

Dentro do espetáculo armado naquela noite de 1967, coube ao diretor e ao público delimitar bem os papéis de quem era jovem e de quem era conservador. Em depoimento para o filme, Chico Buarque - que subiu ao palco com o grupo MPB-4 para cantar sua politizada Roda Viva, um ano depois de ter seduzido o Brasil com a simplicidade de A Banda - recorda que se sentiu "sozinho", como representante de música e atitude conservadoras. A solidão de Chico é confirmada por Caetano Veloso, em depoimento que legitima o do colega-rival da noite. Caetano admite que o uso da guitarra elétrica no arranjo de Alegria, Alegria - a música que defendeu com o conjunto argentino Beat Boys - era também uma atitude política. Posição perfeitamente cabível dentro do contexto efervescente daquele ano. Não por acaso, no único momento em que se distancia da final do festival, o filme mostra imagem (rara) da incrível passeata contra a guitarra elétrica que aconteceu em 17 de julho de 1967 - três meses antes da noite retratada no documentário - e que agregou nomes como Elis Regina e Gilberto Gil. Sereno, Gil conta no filme que foi à passeata apenas por apoio ideológico a Elis e que não se identificava com o protesto (o que era verdade, pois o cantor baiano logo depois recrutou Os Mutantes para defender com ele no festival a cinematográfica Domingo no Parque). Elis - vale lembrar - sentia seu reinado ameaçado pela explosão da Jovem Guarda. E não estava sozinha, pois, embora o filme não toque na questão ao entrevistar Roberto Carlos, quase toda a MPB fechou os ouvidos quando o então Rei da juventude mandou tudo para o inferno em 1965. Exceto Caetano... A patrulha era grande. A ponto de Gil ter tido um ataque de pânico horas antes de defender Domingo no Parque. Prostrado na cama do hotel Danúbio, o cantor precisou ser reanimado com um banho dado pelo diretor da Record. No fim, os jovens Gil e Caetano se consagraram em segundo e em quarto lugar, respectivamente. O conservador Chico ficou em terceiro. E a vitória coube a Edu Lobo com sua Ponteio, defendida pelo autor com Marília Medalha. Lobo também enfatiza a divisão ideológica que havia na MPB em 1967 e lembra em seu depoimento a pressão do público em cima dos artistas em que ele - o público - apostava. Inclusive dinheiro. "A gente era um cavalo", conceitua Lobo, que, para fugir do assédio obtido com a vitória de Ponteio, partiu para a França para fazer longa temporada num cassino com Nara Leão (1942 - 1989), que, embora não seja vista no filme, também participou da noite ao defender A Estrada e o Violeiro em dueto com o autor da música, Sidney Miller (1945 - 1980). Enfim, a MPB nunca mais foi a mesma depois daquela noite de 1967. O Tropicalismo ganhou terreno e implodiu (pré)conceitos, Chico Buarque logo se impôs como (grande e politizado) compositor, Edu Lobo seguiu fiel às (suas) tradições e Roberto Carlos aderiu ao soul antes de ser entronizado Rei do romantismo adulto nos anos 70. Mas tudo poderia ter sido diferente se não fosse aquela mítica noite de 21 de outubro de 1967 que, entre vaias e aplausos, consolidou revoluções estéticas e provocou um debate revivido pelo filme de Renato Terra e Ricardo Calil.

7 comentários:

Mauro Ferreira disse...

Na noite de 21 de outubro de 1967, o Teatro Paramount, em São Paulo (SP), foi palco de disputa emblemática na história da música brasileira. Naquela noite, aconteceu a final do III Festival da Música Popular Brasileira, produzido e exibido pela TV Record. Defenderam músicas nessa mítica final nomes como Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu Lobo, Elis Regina (1945 - 1982), Gilberto Gil, Nana Caymmi, Roberto Carlos e Sérgio Ricardo. Time que - com exceções de Elis e Roberto - entraram em campo para cantar músicas de sua própria autoria. Os ânimos, nos bastidores e na plateia, estavam exaltados. Até porque o que estava em jogo não eram somente as primeiras colocações, mas as inovadoras ideias musicais que Caetano e Gil defendiam, espalhando a semente tropicalista que iria germinar com força naquele ano e em 1968. De um lado, o bloco mais conservador, refratário à inclusão da guitarra elétrica na MPB. De outro, a turma mais antenada - a facção jovem - que absorvia as novidades estéticas da cultura pop (leia-se Beatles) de forma antropofágica. Cenário de disputas ideológicas, a final do III Festival da Música Popular Brasileira é revivida no documentário Uma Noite em 67, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil. Sucesso de público e crítica neste ano de 2010, o filme está sendo editado em DVD com saborosos extras que incluem causos do festival não incluídos no roteiro original - contados por nomes como Caetano, Chico, Sérgio Ricardo, Marília Medalha, Ferreira Gullar e Johnny Alf (1929 - 2010) - e outras músicas defendidas na final, mas não exibidas no documentário por não terem se classificado nos primeiros lugares. Entre elas, o DVD rebobina O Cantador (Dori Caymmi e Nelson Motta - na voz de Elis), A Estrada e o Violeiro (Sidney Miller, com o compositor e Nara Leão), Bom Dia (Nana Caymmi e Gilberto Gil, com Nana), Gabriela (Francisco Fuzetti, com MPB-4) e Samba de Maria (Francis Hime e Vinicius de Moraes, com MPB-4). Apenas um número da final ficou fora do DVD, Ventania (Geraldo Vandré e Hilton Acioly), provavelmente porque o artista que a defendeu, o arisco Geraldo Vandré, não deve ter autorizado a veiculação da música e a de sua imagem no vídeo.

Extras à parte, o filme em si é cativante. A partir de entrevistas inéditas com os principais compositores envolvidos na disputa musical e ideológica, os diretores revolvem emoções, medos e inovações que deram caráter histórico àquela noite de 1967. Até o também arisco Roberto Carlos - que defendeu samba bem tradicional, Maria, Carnaval e Cinzas (Luiz Carlos Paraná), embora estivesse associado à turma jovem por conta do som das tardes dominicais que ecoava no Brasil desde 1965 - fala no filme, contando que não pôde escolher a música que ia cantar, pois já recebeu a incubência de interpretar o samba que, afinal, lhe daria a 5ª colocação na intensa final do III Festival de Música Popular. Todos os depoimentos são corroborados por imagens da noite, colhidas nos arquivos da TV Record. Além de mostrar entrevistas feitas com os artistas pelos jornalistas que cobriam o evento, o filme rebobina as apresentações das músicas que ficaram nos cinco primeiros lugares. E mostra também a lendária defesa de Beto Bom de Bola, quando o autor e intérprete da música, Sérgio Ricardo, perde a paciência com as vaias do público e arremessa seu violão contra a participativa plateia, em um gesto intempestivo que renderia manchetes, custaria a desclassificação do artista e contribuiria para alimentar o mito da noite. "Não me arrependo", garante Sérgio Ricardo com firmeza, lembrando que a plateia da era dos festivais se comportava como uma personagem, já previamente imbuída de vaiar ou aplaudir os artistas. "Era um espetáculo", admite Paulo Machado de Carvalho Filho (1924 - 2010), diretor da TV Record, o comandante do espetáculo.

Mauro Ferreira disse...

Dentro do espetáculo armado naquela noite de 1967, coube ao diretor e ao público delimitar bem os papéis de quem era jovem e de quem era conservador. Em depoimento para o filme, Chico Buarque - que subiu ao palco com o grupo MPB-4 para cantar sua politizada Roda Viva, um ano depois de ter seduzido o Brasil com a simplicidade de A Banda - recorda que se sentiu "sozinho", como representante de música e atitude conservadoras. A solidão de Chico é confirmada por Caetano Veloso, em depoimento que legitima o do colega-rival da noite. Caetano admite que o uso da guitarra elétrica no arranjo de Alegria, Alegria - a música que defendeu com o conjunto argentino Beat Boys - era também uma atitude política. Posição perfeitamente cabível dentro do contexto efervescente daquele ano. Não por acaso, no único momento em que se distancia da final do festival, o filme mostra imagem (rara) da incrível passeata contra a guitarra elétrica que aconteceu em 17 de julho de 1967 - três meses antes da noite retratada no documentário - e que agregou nomes como Elis Regina e Gilberto Gil. Sereno, Gil conta no filme que foi à passeata apenas por apoio ideológico a Elis e que não se identificava com o protesto (o que era verdade, pois o cantor baiano logo depois recrutou Os Mutantes para defender com ele no festival a cinematográfica Domingo no Parque). Elis - vale lembrar - sentia seu reinado ameaçado pela explosão da Jovem Guarda. E não estava sozinha, pois, embora o filme não toque na questão ao entrevistar Roberto Carlos, quase toda a MPB fechou os ouvidos quando o então Rei da juventude mandou tudo para o inferno em 1965. Exceto Caetano... A patrulha era grande. A ponto de Gil ter tido um ataque de pânico horas antes de defender Domingo no Parque. Prostrado na cama do hotel Danúbio, o cantor precisou ser reanimado com um banho dado pelo diretor da Record. No fim, os jovens Gil e Caetano se consagraram em segundo e em quarto lugar, respectivamente. O conservador Chico ficou em terceiro. E a vitória coube a Edu Lobo com sua Ponteio, defendida pelo autor com Marília Medalha. Lobo também enfatiza a divisão ideológica que havia na MPB em 1967 e lembra em seu depoimento a pressão do público em cima dos artistas em que ele - o público - apostava. Inclusive dinheiro. "A gente era um cavalo", conceitua Lobo, que, para fugir do assédio obtido com a vitória de Ponteio, partiu para a França para fazer longa temporada num cassino com Nara Leão (1942 - 1989), que, embora não seja vista no filme, também participou da noite ao defender A Estrada e o Violeiro em dueto com o autor da música, Sidney Miller (1945 - 1980). Enfim, a MPB nunca mais foi a mesma depois daquela noite de 1967. O Tropicalismo ganhou terreno e implodiu (pré)conceitos, Chico Buarque logo se impôs como (grande e politizado) compositor, Edu Lobo seguiu fiel às (suas) tradições e Roberto Carlos aderiu ao soul antes de ser entronizado Rei do romantismo adulto nos anos 70. Mas tudo poderia ter sido diferente se não fosse aquela mítica noite de 21 de outubro de 1967 que, entre vaias e aplausos, consolidou revoluções estéticas e provocou um debate revivido pelo filme de Renato Terra e Ricardo Calil.

Carlos Lopes disse...

Vi o documentário em Lisboa, no cinema São Jorge, há mês e meio atrás. Muito bom!

Marcelo Barbosa disse...

Mauro,

Não tem nada sobre a Rainha do Samba não? Ela era rata de festivais. Caso tenha, comprarei, do contrário, pedirei emprestado. Abs,

Marcelo Barbosa - Brasília (DF)

Márcio disse...

Tem não, Marcelo. Comprei esse DVD há duas semanas, e o que há nos extras são entrevistas da época e algumas atuais com os organizadores e com alguns fãs, além íntegra das canções classificadas até o 10º lugar, salvo engano.

Marcelo Barbosa disse...

Muito obrigado, Marcio! Abraços,

Marcelo Barbosa - Brasília (DF)

Ismael Angelus disse...

Ótima resenha do Dvd, deu pra me situar de algumas coisas que eu não sabia, algo que só serviu para aumentar a curiosidade de assistí-lo.

Sérgio Ricardo bancando Pete Townshend é impagável, hahaha!