Mauro Ferreira no G1

Aviso aos navegantes: desde 6 de julho de 2016, o jornalista Mauro Ferreira atualiza diariamente uma coluna sobre o mercado fonográfico brasileiro no portal G1. Clique aqui para acessar a coluna. O endereço é http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/


quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Como sabe, Clima canta Brasil áspero em dissonante solo de barulhos feios

Resenha de álbum
Título: Monumento ao soldado desconhecido
Artista: Clima
Gravadora: YB Music
Cotação: * * * 1/2

"Lalalaiá / Eu cantei / Eu não sei cantar / Lalalaiá / Eu imitei / Eu não sei imitar / Eu tentei / Tem dó / Eu fiquei / Dodói". Guardadas as devidas proporções, os versos confessionais de Eu não sei cantar - segunda das 12 músicas de autoria de Clima e Nuno Ramos ouvidas no primeiro álbum do compositor e artista plástico paulistano Eduardo Climachauska - são uma espécie de Desafinado (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça, 1959) dentro do cancioneiro de Clima. Em tese improvável e mesmo risível, o link entre as duas composições faz algum sentido quando, no fecho do álbum Monumento ao soldado desconhecido, o canto de Clima evoca o canto de João Gilberto na marcha da música-título Monumento ao soldado desconhecido. Nesta composição, Clima canta um Brasil rouco e sem voz, feito nós. Ao marchar tensa para o fim rumo à citação de dois versos de Dentro das rosas (2015), uma das músicas lançadas pela cantora paulistana Mariana Aydar no álbum Pedaço duma asa (Brisa Records / Pommelo Distribuições, 2015), a faixa Monumento ao soldado desconhecido sintetiza disco de clima árido em que o artista canta - como sabe - um Brasil dissonante, sem harmonia, pautado no disco por barulhos feios que remetem a Romulo Fróes, coprodutor e diretor do álbum que vai ser lançado no mercado fonográfico em 20 de janeiro de 2016. Quatro das 12 músicas - Cabô (tema cuja desesperança e solidão são traduzidas pelos toques crus das guitarras de Clima e Rodrigo Campos, únicos instrumentos ouvidos na faixa), Dedo duro (faixa que evidencia o vigor da batida da bateria de Sergio Machado entre sons que incomodam como ciscos nos olhos), Dentro das rosas e Mamãe papai (samba torto como os arranjos do disco) - são oriundas do belo CD em que Aydar cantou a parceria de Clima e Nuno Ramos, ambos artistas plásticos, ambos compositores associados a uma cena paulistana que tem Romulo Fróes e Rodrigo Campos (recorrente como guitarrista nas 11 faixas do disco) entre os expoentes. As outras oito são inéditas, caso de Coxa branca. O fato de Romulo Fróes ser o diretor artístico do disco faz com que Monumento ao soldado desconhecido seja erguido em sintonia com os silêncios, a poesia, a dissonância e a feiura dos ruídos que perpassam a obra de Fróes. Exposta sobre a batida mântrica do arranjo, a dialética da impositiva Fica onde está evoca a poética do ser ou não ser, pregando a inércia existencial como a anestesia das dores do mundo solitário cantado no disco ("Vem cá / Mas não vem / Fica onde está / Assim / Sem ninguém / Nem sofrerá"). O tom chiaroscuro dos versos de Teta corroboram a tristeza entranhada na poesia pungente deste Monumento ao soldado desconhecido que, mesmo erguido no concreto da cidade de São Paulo (SP), ecoa até as veredas do grande sertão nordestino. Alguém responde para mim é frevo meio envergonhado que cai na folia sem metais, entre indagações ("Quem pôs o mundo torto dentro de mim?") e golpes de bateria e guitarra. Em Bahiuco, a sós com o violão, Clima canta - como sabe - poesia árida como a seca do Nordeste, alinhando correlações dicotômicas entre Bahia e Pernambuco. É a mesma secura que sustenta É uma árvore e o próprio Monumento ao soldado desconhecido. Clima parte do concreto caos da urbana São Paulo para cantar áspero Brasil de barro e palha, ainda por ser descoberto. Brasil em que também cabe João Gilberto. Mas um Brasil ainda tão torto como o dissonante solo de Clima. País em que, citando versos da faixa-título, "O berro da manchete / Não cria mais tumulto".

Um comentário:

Mauro Ferreira disse...

♪ "Lalalaiá / Eu cantei / Eu não sei cantar / Lalalaiá / Eu imitei / Eu não sei imitar / Eu tentei / Tem dó / Eu fiquei / Dodói". Guardadas as devidas proporções, os versos confessionais de Eu não sei cantar - segunda das 12 músicas de autoria de Clima e Nuno Ramos ouvidas no primeiro álbum do compositor e artista plástico paulistano Eduardo Climachauska - são uma espécie de Desafinado (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça, 1959) dentro do cancioneiro de Clima. Em tese improvável e mesmo risível, o link entre as duas composições faz algum sentido quando, no fecho do álbum Monumento ao soldado desconhecido, o canto de Clima evoca o canto de João Gilberto na marcha da música-título Monumento ao soldado desconhecido. Nesta composição, Clima canta um Brasil rouco e sem voz, feito nós. Ao marchar tensa para o fim rumo à citação de dois versos de Dentro das rosas (2015), uma das músicas lançadas pela cantora paulistana Mariana Aydar no álbum Pedaço duma asa (Brisa Records / Pommelo Distribuições, 2015), a faixa Monumento ao soldado desconhecido sintetiza disco de clima árido em que o artista canta - como sabe - um Brasil dissonante, sem harmonia, pautado no disco por barulhos feios que remetem a Romulo Fróes, coprodutor e diretor do álbum que vai ser lançado no mercado fonográfico em 20 de janeiro de 2016. Quatro das 12 músicas - Cabô (tema cuja desesperança e solidão são traduzidas pelos toques crus das guitarras de Clima e Rodrigo Campos, únicos instrumentos ouvidos na faixa), Dedo duro (faixa que evidencia o vigor da batida da bateria de Sérgio Machado entre sons que incomodam como ciscos nos olhos), Dentro das rosas e Mamãe papai (samba torto como os arranjos do disco) - são oriundas do belo CD em que Aydar cantou a parceria de Clima e Nuno Ramos, ambos artistas plásticos, ambos compositores associados a uma cena paulistana que tem Romulo Fróes e Rodrigo Campos (recorrente como guitarrista nas 11 faixas do disco) entre os expoentes. As outras oito são inéditas, caso de Coxa branca. O fato de Romulo Fróes ser o diretor artístico do disco faz com que Monumento ao soldado desconhecido seja erguido em sintonia com os silêncios, a poesia, a dissonância e a feiura dos ruídos que perpassam a obra de Fróes. Exposta sobre a batida mântrica do arranjo, a dialética da impositiva Fica onde está evoca a poética do ser ou não ser, pregando a inércia existencial como a anestesia das dores do mundo solitário cantado no disco ("Vem cá / Mas não vem / Fica onde está / Assim / Sem ninguém / Nem sofrerá"). O tom chiaroscuro dos versos de Teta corroboram a tristeza entranhada na poesia pungente deste Monumento ao soldado desconhecido que, mesmo erguido no concreto da cidade de São Paulo (SP), ecoa até as veredas do grande sertão nordestino. Alguém responde para mim é frevo meio envergonhado que cai na folia sem metais, entre indagações ("Quem pôs o mundo torto dentro de mim?") e golpes de bateria e guitarra. Em Bahiuco, a sós com o violão, Clima canta - como sabe - poesia árida como a seca do Nordeste, alinhando correlações dicotômicas entre Bahia e Pernambuco. É a mesma secura que sustenta É uma árvore e o próprio Monumento ao soldado desconhecido. Clima parte do concreto caos da urbana São Paulo para cantar áspero Brasil de barro e palha, ainda por ser descoberto. Brasil em que também cabe João Gilberto. Mas um Brasil ainda tão torto como o dissonante solo de Clima. País em que, citando versos da faixa-título, "O berro da manchete / Não cria mais tumulto".