Mauro Ferreira no G1

Aviso aos navegantes: desde 6 de julho de 2016, o jornalista Mauro Ferreira atualiza diariamente uma coluna sobre o mercado fonográfico brasileiro no portal G1. Clique aqui para acessar a coluna. O endereço é http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/


domingo, 11 de outubro de 2015

Trilha de Claudio Lins e a direção de João Fonseca acertam os tons do 'Beijo'

Resenha de musical
Título: O beijo no asfalto - O musical
Texto: Nelson Rodrigues
Direção: João Fonseca
Trilha sonora original: Claudio Lins
Direção musical: Délia Fischer
Elenco: Claudio Lins, Laila Garin, Gracindo Jr., Thelmo
            Fernandes, Yasmin Gomlevsky, Claudio Tovar, 
            Jorge Maya, Janaína Azevedo e outros
Foto: Renato Pagliacci
Cotação: * * * *
Musical em cartaz no Teatro Sesc Ginástico, no Rio de Janeiro (RJ), de quinta-feira a domingo, até 8 de novembro de 2015
Temporada programada no Teatro das Artes, no Rio de Janeiro (RJ), de 12 de novembro a 13 de dezembro de 2015

Os textos escritos para teatro pelo jornalista e dramaturgo pernambucano - de criação carioca - Nelson Rodrigues (1912 - 1980) têm uma musicalidade própria, construída através do ritmo ágil dos diálogos. Grande peça escrita em 1960 e encenada pela primeira vez em 1961, O beijo no asfalto exemplificou a habilidade do escritor para orquestrar uma trama em que cada nota - ou cena - contribui para a harmonia da peça. Por isso mesmo, a ideia de acrescentar música ao texto de O beijo no asfalto - projeto arquitetado desde 2009 pelo ator, cantor e compositor carioca Claudio Lins - seria, em tese, no mínimo arriscada. Mas, no caso, valeu correr os riscos. O resultado da encenação de O beijo no asfalto - O musical, espetáculo que debutou na cena do Rio de Janeiro (RJ) neste mês de outubro de 2015, é exemplar. Aliada à direção de João Fonseca, encenador que já mostrou domínio do universo rodriguiano em montagens anteriores, a trilha sonora original de Claudio Lins acerta o tom do texto de Nelson e amplifica o sentido e a musicalidade já contida nos diálogos. É provável que nenhuma das canções compostas por Lins tenha vida útil fora da cena. Contudo, usada em cena, a música original serve à montagem com perfeição e contribui para o andamento da ação. Ou seja, nasce um compositor de música de teatro - gênero que tem suas especificidades. Além de ser o produtor e o protagonista da peça, desempenhando bem o papel de Arandir, em torno do qual se arma o jogo sórdido da trama, Lins solta a voz em temas como O beijo no asfalto e Cúmplices, número feito em dueto com a atriz e cantora Laila Garin, intérprete de Selminha, a mulher de Arandir, peça importante no tabuleiro das emoções orquestradas por Nelson com engenhosidade. Projetada no meio teatral ao encarnar convincentemente Elis Regina (1945 - 1982) em recente musical sobre a cantora gaúcha, Garin se confirma grande atriz na encenação de O beijo no asfalto - O musical. No início, a Selminha de Garin é a típica mulher suburbana do carioca mundo rodriguiano. À medida que a ação avança e o jogo vira cada vez mais contra Arandir, Selminha se desarma, dando chance a Garin de adensar sua interpretação em sintonia com a música. É de Garin a pungente interpretação de A noite do meu bem (Dolores Duran, 1959), único número musical do roteiro que abre mão da trilha de Lins. A propósito, ao longo dos dois atos do espetáculo, o compositor costura sua trilha original - criada com referências da música produzida no Brasil em 1960 - com citações de músicas alheias. Samba-canção lançado em disco em 1960, ano em que Nelson Rodrigues escreveu O beijo no asfalto, Negue (Adelino Moreira e  Enzo de Almeida Passos) é citado em Cúmplices. Do ponto de vista rítmico, a trilha de Lins é bem diversificada, indo além da canção e do samba-canção. Há sambas, marchas - Baile dos canalhas ilustra bem o cinismo que rege as presenças de policiais e jornalistas na trama - e até um tango, Não foi o primeiro beijo, número protagonizado pela atriz Janaína Azevedo, intérprete da venenosa vizinha Dona Matilde. O tango incorpora citação de Solidão (1958), outro tema da compositora carioca Dolores Duran (1930 - 1950), nome recorrente na trilha do espetáculo, assim como o compositor também carioca Miguel Gustavo (1922 - 1972), autor de Jornal da morte (1961), samba citado em Sou porco sim, música solada por Thelmo Fernandes, ator que valoriza a encenação com sua interpretação sagaz do repórter Amado Ribeiro. Em fina sintonia, Thelmo e Cláudio Tovar - intérprete do delegado Cunha - aproveitam cada uma de suas falas para evidenciar o sarcasmo e a hipocrisia que regem os tons de suas reptilianas personagens. Já Jorge Maya aciona com segurança a chave cômica que abre o riso da plateia a cada intervenção de Aruba, personagem que gravita no núcleo policial da trama. Enfim, com elenco afinado (que ainda destaca a atuação firme de Gracindo Jr. como o sogro de Arandir, Aprígio, enrustido solista de Alguém), a primeira versão musical de O beijo no asfalto se impõe pelo conjunto espetacular da obra (o texto, a direção de João Fonseca, o elenco e a trilha de Claudio Lins) como ótima opção para espectadores já cansados dos andamentos lineares dos musicais que biografam ídolos da canção popular. O beijo no asfalto - O musical  segue o seu próprio ritmo sem trair a musicalidade vivaz do texto original.

4 comentários:

Mauro Ferreira disse...

♪ Os textos escritos para teatro pelo jornalista e dramaturgo pernambucano - de criação carioca - Nelson Rodrigues (1912 - 1980) têm uma musicalidade própria, construída através do ritmo ágil dos diálogos. Peça escrita em 1960 e encenada pela primeira vez em 1961, O beijo no asfalto exemplificou a habilidade do escritor para orquestrar uma trama em que cada nota - ou cena - contribui para a harmonia da peça. Por isso mesmo, a ideia de acrescentar música ao texto de O beijo no asfalto - projeto arquitetado desde 2009 pelo ator, cantor e compositor carioca Claudio Lins - seria, em tese, no mínimo arriscada. Mas, no caso, valeu correr os riscos. O resultado da encenação de O beijo no asfalto - O musical, espetáculo que debutou na cena do Rio de Janeiro (RJ) neste mês de outubro de 2015, é exemplar. Aliada à direção de João Fonseca, encenador que já mostrou domínio do universo rodriguiano em montagens anteriores, a trilha sonora original de Claudio Lins acerta o tom do texto de Nelson e amplifica o sentido e a musicalidade já contida nos diálogos. É provável que nenhuma das canções compostas por Lins tenha vida útil fora da cena. Contudo, em cena, a música original serve à montagem com perfeição e contribui para o andamento da ação. Ou seja, nasce um compositor de música de teatro - gênero que tem suas especificidades. Além de ser o produtor e o protagonista da peça, desempenhando bem o papel de Arandir, em torno do qual se arma o jogo sórdido da trama, Lins solta a voz em temas como O beijo no asfalto e Cúmplices, número feito em dueto com a atriz e cantora Laila Garin, intérprete de Selminha, a mulher de Arandir, peça importante no tabuleiro das emoções orquestradas por Nelson com engenhosidade. Projetada no meio teatral ao encarnar convincentemente Elis Regina (1945 - 1982) em recente musical sobre a cantora gaúcha, Garin se confirma grande atriz na encenação de O beijo no asfalto - O musical. No início, a Selminha de Garin é a típica mulher suburbana do carioca mundo rodriguiano. À medida que a ação avança e o jogo vira cada vez mais contra Arandir, Selminha se desarma, dando chance a Garin de adensar sua interpretação em sintonia com a música. É de Garin a pungente interpretação de A noite do meu bem (Dolores Duran, 1959), único número musical do roteiro que abre mão da trilha de Lins. A propósito, ao longo dos dois atos do espetáculo, o compositor costura sua trilha original - criada com referências da música produzida no Brasil em 1960 - com citações de músicas alheias. Samba-canção lançado em disco em 1960, ano em que Nelson Rodrigues escreveu O beijo no asfalto, Negue (Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos) é citado em Cúmplices.

Mauro Ferreira disse...

Do ponto de vista rítmico, a trilha de Lins é bem diversificada, indo além da canção e do samba-canção. Há sambas, marchas - Baile dos canalhas ilustra bem o cinismo que rege as presenças de policiais e jornalistas na trama - e até um tango, Não foi o primeiro beijo, número protagonizado pela atriz Janaína Azevedo, intérprete da venenosa vizinha Dona Matilde. O tango incorpora citação de Solidão (1958), outro tema da compositora carioca Dolores Duran (1930 - 1950), nome recorrente na trilha do espetáculo, assim como o compositor também carioca Miguel Gustavo (1922 - 1972), autor de Jornal da morte (1961), samba citado em Sou porco sim, música solada por Thelmo Fernandes, ator que valoriza a encenação com sua interpretação sagaz do repórter Amado Ribeiro. Em fina sintonia, Thelmo e Cláudio Tovar - intérprete do delegado Cunha - aproveitam cada uma de suas falas para evidenciar o sarcasmo e a hipocrisia que regem os tons de suas reptilianas personagens. Já Jorge Maya aciona com segurança a chave cômica que abre o riso da plateia a cada intervenção de Aruba, personagem que gravita no núcleo policial da trama. Enfim, com elenco afinado (que ainda destaca a atuação firme de Gracindo Jr. como o sogro de Arandir, Aprígio, enrustido solista de Alguém), a primeira versão musical de O beijo no asfalto se impõe pelo conjunto espetacular da obra (o texto, a direção de João Fonseca, o elenco e a trilha de Claudio Lins) como ótima opção para espectadores já cansados dos andamentos lineares dos musicais que biografam ídolos da canção popular. O beijo no asfalto - O musical segue o seu próprio ritmo sem trair a musicalidade vivaz do texto original.

Regina Cavalcanti disse...

Estou encantada com o Musical, é fantastico👏🎭

Marcos Lúcio disse...

Ao terminar a leitura deste seu lúcido e sensível comentário, não tive dúvidas e corri para o teatro.Concordo absolutamente com suas avaliações precisas.Um espetáculo de alto nível e imperdível, no mínimo.Adoraria ter acesso às letras inteligentes e tocantes do Cláudio Lins. Mais um gol de placa do talentoso João Fonseca...e inesquecível como um beijo no asfalto naquelas condições "nelsonrodrigueanamente" ardilosas.