Mauro Ferreira no G1

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domingo, 15 de junho de 2014

Afiado CD sobre a morte, 'Encarnado' ganha cor ainda mais viva em cena

Resenha de show
Título: Encarnado
Artista: Juçara Marçal (em foto de Rodrigo Goffredo)
Local: Audio Rebel (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 14 de junho de 2014
Cotação: * * * * *
Show em cartaz no Áudio Rebel, no Rio de Janeiro (RJ), até 15 de junho de 2014

Em seu primeiro álbum solo, Encarnado, Juçara Marçal vê a cara da morte. E ela - assim como a cantora revelada no grupo paulistano Metá Metá - está bem viva, pulsando nas entranhas deste disco cortante, perfeito, cuja força advém da completa harmonia entre o canto da intérprete, a sonoridade crua - produto da interação entre as cordas rascantes das guitarras de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos (também no cavaquinho) e da rabeca de Thomas Rhorer - e um repertório que, embora contenha algumas músicas já anteriormente gravadas sem repercussão por seus compositores, parece todo feito sob medida para esse álbum conceitual. Disco mais impactante deste primeiro semestre de 2014 (e possivelmente do ano), Encarnado gerou show igualmente incisivo, feito no fio da navalha. A julgar pela estreia carioca do show Encarnado, feita em 14 de junho de 2014 no palco alternativo da casa-estúdio Audio Rebel, esse cancioneiro sobre a morte ganha (ainda mais) vida quando tocado ao vivo. Em cena, a presença de Juçara se irmana com a do trio formado por Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Thomas Rohrer, sem que a cantora se sobreponha aos músicos. É do equilíbrio entre canto e sonoridade que Encarnado extrai seu poder de sedução, jorrando sangue, ódio - mote de Damião (Douglas Germano e Everaldo Ferreira da Silva, 2011), tema que conclama o desencarnado Damião Ximenes Lopes a se vingar dos maus tratos que o levaram à morte - e chagas que comem a razão, como prega Velho amarelo (Rodrigo Campos, 2014), primeira das 15 músicas do roteiro. Em cena, Encarnado jamais perde sua cor viva. Mas há momentos que atingem elevação rara de se ver em palcos. A atmosfera heavy gerada pela trama do trio de cordas em Ciranda do aborto (Kiko Dinucci, 2014) dá ainda mais peso a uma música já em si pesada, angustiante. Sim, Encarnado ferve em caldeirão de impressões e sentidos da morte, mas Juçara também pega leve. Criando um tempo de delicadeza possível dentro de repertório áspero, a cantora entra suave no poético rio de Xote de navegação (Dominguinhos e Chico Buarque, 1998), uma das três músicas ausentes do CD que, no show, se alinham com as 12 composições do álbum Encarnado. Nesse número, o canto de Juçara soa mais brando, quase a capella, pontuado somente por intervenções sutis de Thomas Rohrer no manejo de instrumentos de percussão, "apetrechos mecânicos", como conceituou a cantora para o antenado público que se aglomerava na pequena pista da Audio Rebel. Rodrigo Campos também tira sons percussivos, a partir do batuque na madeira de sua cavaquinho, em Odoyá (Juçara Marçal, 2014), número climático de ambiência progressivamente psicodélica. Na temática, Odoyá se afina com Canção para ninar Oxum (Douglas Germano, 2014). E por falar em afinação, o trânsito fluente de Juçara Marçal pelas notas altas de Queimando a língua (Romulo Fróes e Alice Coutinho, 2014) evidencia o apuro vocal da intérprete, hábil na exploração de todos os tons e possibilidades do repertório de Encarnado. Nesse número, feito somente com as guitarras de Campos e Dinucci, há os ruídos e estranhezas recorrentes ao longo da apresentação, ressaltando a contundência do cancioneiro. Se E o Quico? (Itamar Assumpção, 1983) assombra com a poética ainda desnorteante do Nego Dito, Não tenha ódio no verão (Tom Zé, 2008) provoca catarse na plateia no número mais interativo do show. Na sequência, a sagaz lembrança de Comprimido (Paulinho da Viola, 1973) - samba levado no toque do cavaquinho de Rodrigo Campos - introjeta o desassossego que paira no show, costurando o repertório. Musicalmente, Comprimido prepara o clima para Encarnado cair no samba à moda (quase) tradicional em João Carranca (Kiko Dinucci, 2014), crônica (quase) tragicômica que corrobora a tese de que o povo anda (se) matando antes mesmo de a morte chegar, como arremata A velha da capa preta (Siba Veloso, 2007). No bis, Opinião (Zé Kétti, 1964) - samba desconstruído na pulsação das guitarras e da rabeca - reitera que Juçara Marçal e o fantástico trio atingem o céu ao encarar a morte na cena arrepiante do show Encarnado.

7 comentários:

Mauro Ferreira disse...

Em seu primeiro álbum solo, Encarnado, Juçara Marçal vê a cara da morte. E ela - assim como a cantora revelada no grupo paulistano Metá Metá - está bem viva, pulsando nas entranhas deste disco cortante, perfeito, cuja força advém da completa harmonia entre o canto da intérprete, a sonoridade crua - produto da interação entre as cordas rascantes das guitarras de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos (também no cavaquinho) e da rabeca de Thomas Rhorer - e um repertório que, embora contenha algumas músicas já anteriormente gravadas sem repercussão por seus compositores, parece todo feito sob medida para esse álbum conceitual. Disco mais impactante deste primeiro semestre de 2104 (e possivelmente do ano), Encarnado gerou show igualmente incisivo, feito no fio da navalha. A julgar pela estreia carioca do show Encarnado, feita em 14 de junho de 2014 no palco alternativo da casa-estúdio Áudio Rebel, esse cancioneiro sobre a morte ganha (ainda mais) vida quando tocado ao vivo. Em cena, a presença de Juçara se irmana com a do trio formado por Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Thomas Rhorer, sem que a cantora se sobreponha aos músicos. É do equilíbrio entre canto e sonoridade que Encarnado extrai seu poder de sedução, jorrando sangue, ódio - mote de Damião (Douglas Germano e Everaldo Ferreira da Silva, 2011), tema que conclama o desencarnado Damião Ximenes Lopes a se vingar dos maus tratos que o levaram à morte - e chagas que comem a razão, como prega Velho amarelo (Rodrigo Campos, 2014), primeira das 15 músicas do roteiro. Em cena, Encarnado jamais perde sua cor viva. Mas há momentos que atingem elevação rara de se ver em palcos. A atmosfera heavy gerada pela trama do trio de cordas em Ciranda do aborto (Kiko Dinucci, 2014) dá ainda mais peso a uma música já em si pesada, angustiante. Sim, Encarnado ferve em caldeirão de impressões e sentidos da morte, mas Juçara também pega leve. Criando um tempo de delicadeza possível dentro de repertório áspero, a cantora entra suave no poético rio de Xote de navegação (Dominguinhos e Chico Buarque, 1998), uma das três músicas ausentes do CD que, no show, se alinham com as 12 composições do álbum Encarnado. Nesse número, o canto de Juçara soa mais brando, quase a capella, pontuado somente por intervenções sutis de Thomas Rhores no manejo de instrumentos de percussão, "apetrechos mecânicos", como conceituou a cantora para o antenado público que se aglomerava na pequena pista da Áudio Rebel. Rodrigo Campos também tira sons percussivos, a partir do batuque na madeira de sua cavaquinho, em Odoyá (Juçara Marçal, 2014), número climático de ambiência progressivamente psicodélica. Na temática, Odoyá se afina com Canção para ninar Oxum (Douglas Germano, 2014). E por falar em afinação, o trânsito fluente de Juçara Marçal pelas notas altas de Queimando a língua (Romulo Fróes e Alice Coutinho, 2014) evidencia o apuro vocal da intérprete, hábil na exploração de todos os tons e possibilidades do repertório de Encarnado. Nesse número, feito somente com as guitarras de Campos e Dinucci, há os ruídos e estranhezas recorrentes ao longo da apresentação, ressaltando a contundência do cancioneiro. Se E o Quico? (Itamar Assumpção, 1983) assombra com a poética ainda desnorteante do Nego Dito, Não tenha ódio no verão (Tom Zé, 2008) provoca catarse na plateia no número mais interativo do show. Na sequência, a sagaz lembrança de Comprimido (Paulinho da Viola, 1973) - samba levado no toque do cavaquinho de Rodrigo Campos - introjeta o desassossego que paira no show, costurando o repertório. Musicalmente, Comprimido prepara o clima para Encarnado cair no samba à moda mais tradicional em João Carranca (Kiko Dinucci, 2014), crônica quase tragicômica que corrobora a tese de que o povo anda (se) matando antes mesmo de a morte chegar, como arremata A velha da capa preta (Siba Veloso, 2007). No bis, Opinião (Zé Kétti, 1964) - samba desconstruído na pulsação das guitarras e da rabeca - reitera que Juçara Marçal e o fantástico trio atingem o céu ao encarar a morte na cena arrepiante do show Encarnado.

Douglas Carvalho disse...

Preciso ouvir esse disco denovo e denovo pra entender o que foi que o Mauro viu de tão especial nele. Tá... a Juçara como cantora é OK, mas o disco é chato.

E não é chato pelo tema. Mas é pq é aquele tipo de disco que parece uma enorme música de uma hora. Não tem contraste entre uma faixa e outra, vc vai ouvindo, ouvindo, nada encanta, nada de pega, e você cansa antes de chegar no final.

Como já existiram casos de discos (e cantores) que inicialmente tiveram esse mesmo ar de tédio antes e que, com o tempo, foram me conquistando, de repente aconteça o mesmo com esse.

Isso se o tema do disco não me atinja no meio de uma audição e eu MORRA de tédio.

Déa Trancoso disse...

trabalho impressionante. cantora com capacidade rara de mandar nos sentimentos da gente apenas com o uso de sua voz. saí da audição de encarnado mortalmente viva!!! grande texto mauro. grata.

Felipe dos Santos disse...

Caro Mauro, apenas para apontar dois erros: "Disco mais impactante deste primeiro semestre de 2104 (e possivelmente do ano) (...)", obviamente, tem "2014".

E o nome do violinista suíço radicado no Brasil é Thomas Rohrer, não "Rhorer" ou "Rhores", como visto ao longo do texto.

Óbvio, erros pequenos e perdoáveis, já que o cansaço deve ser grande.

Abraços,

Felipe dos Santos Souza

Mauro Ferreira disse...

Gratíssimo, Felipe. Abs, MauroF

ADEMAR AMANCIO disse...

Qualquer dia eu ouço melhor este disco,quem sabe...

Johnny Cesar disse...

Mauro, acho difícil ter melhor em 2014, o cd e o show são perfeitos. Eu me emocionei muito no show.
Abraço, J.C