Mauro Ferreira no G1

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sábado, 24 de dezembro de 2011

Coleção criada por Gavin para Warner mostra que disco pode ser cultura

Resenha de coleção de CDs
Título: Coleção Cultura
Curadoria: Charles Gavin
Artistas: Arthur Verocai, Azymuth, Barney Kassel, Eumir Deodato, Herbie Mann, Hermeto Pascoal, João Gilberto, Jon Hendricks, Marcus Miller, Miles Davis, Sergio Mendes, Tom Zé
Gravadora: Warner Music
Cotação: * * * * *

Houve um tempo - nos anos 70 - em que os álbuns traziam impresso na contracapa o slogan Disco É Cultura. Eram tempos em que boa parte dos discos era mesmo um produto cultural. Alguns dos dez títulos da segunda fase da Coleção Cultura - produzida pela Warner Music sob a curadoria e supervisão de Charles Gavin - são desse tempo. O título da série, Coleção Cultura, alude sobretudo ao fato de os CDs serem vendidos somente na rede de lojas da Livraria Cultura, mas o duplo sentido é justificado. São discos de alto valor cultural, reeditados com zelo em edições remasterizadas a partir dos tapes originais. Com texto escrito pelo jornalista Tárik de Souza para sua primeira reedição em CD no mercado nacional, Arthur Verocai (1972) - primeiro trabalho solo do compositor e maestro carioca Arthur Verocai - ainda soa moderno e original com seu mix de pop, jazz, MPB, soul e música clássica que alterna faixas instrumentais e cantadas. Igualmente original por conta de seu híbrido de samba, jazz, funk, rock e pop, o segundo álbum do trio carioca Azymuth, Águia Não Come Mosca (1977), volta ao catálogo em reedição que traz no encarte texto escrito por Gavin sobre a trajetória do grupo. O sucesso do disco é Vôo Sobre o Horizonte, tema propagado na trilha sonora da novela Locomotivas (TV Globo, 1977). Do acervo internacional da Atlantic Records, a Coleção Cultura disponibiliza Hair Is Beautiful (1969), álbum em que o guitarrista e arranjador norte-americano de jazz Barney Kessel (1923 - 2004) apresenta releitura instrumental da trilha sonora do espetáculo Hair, símbolo teatral da era da contracultura e do movimento Hippie. Cheio de grooves urdidos com as liberdades estéticas da fusion (a mistura pop de rock, jazz e funk), Love Island (1978) é o primeiro álbum gravado pelo pianista e maestro brasileiro Eumir Deodato para a Warner Music. Na época da gravação do disco, Deodato já era nome cultuado na cena musical estrangeira, inclusive por conta da herança da Bossa Nova, música da qual o flautista norte-americano Herbie Mann (1930 - 2003) se apropriou no álbum Herbie Mann & João Gilberto with Antonio Carlos Jobim (1966), gravado no Rio de Janeiro (RJ), terra natal da bossa, com as presenças ilustres dos dois papas do gênero, João (no violão e nos vocais) e um certo Mr. Jobim (arranjador, solista de One Note Samba). É a mesma bossa que fascinou o cantor, compositor e baterista Jon Hendricks a ponto de ele, cinco anos antes de Mann, gravar disco intitulado Salud! João Gilberto (1961), ora reeditado na Coleção Cultura. Em outra trilha, de sotaque mais pop jazzístico, The Music From Siesta é o disco de 1987 que reúne os temas compostos por Marcus Milles (e gravados com ninguém menos do que Miles Davis) para o primeiro filme da videomaker Mary Lamber. De volta à bossa e ao suingue brasileiro, In Person at El Matador (1966) é o sexto álbum do pianista brasileiro Sergio Mendes - já idolatrado nos Estados Unidos naquela época por decodificar com propriedade o balanço nacional para os ouvidos norte-americanos - enquanto Zabumbê-Bum-Á (1979) - primeiro álbum de Hermeto Pascoal para a Warner - flagra o espírito lúdico de Bruxo entre dissonâncias e improvisos criados a partir dos ritmos nordestinos. Por fim, a Coleção Cultura traz de volta ao catálogo um dos discos mais cultuados de Tom Zé, Todos os Olhos (1973). Quarto álbum do baiano tropicalista, Todos os Olhos apresentou o samba Augusta, Angélica e Consolação - hoje no repertório de cantoras moderninhas - entre temas experimentais. Sim, disco pode ser cultura.

5 comentários:

Mauro Ferreira disse...

Houve um tempo - nos anos 70 - em que os álbuns traziam impresso na contracapa o slogan Disco É Cultura. Eram tempos em que boa parte dos discos era mesmo um produto cultural. Alguns dos dez títulos da segunda fase da Coleção Cultura - produzida pela Warner Music sob a curadoria e supervisão de Charles Gavin - são desse tempo. O título da série, Coleção Cultura, alude sobretudo ao fato de os CDs serem vendidos somente na rede de lojas da Livraria Cultura, mas o duplo sentido é justificado. São discos de alto valor cultural, reeditados com zelo em edições remasterizadas a partir dos tapes originais. Com texto escrito pelo jornalista Tárik de Souza para sua primeira reedição em CD no mercado nacional, Arthur Verocai (1972) - primeiro trabalho solo do compositor e maestro carioca Arthur Verocai - ainda soa moderno e original com seu mix de pop, jazz, MPB, soul e música clássica que alterna faixas instrumentais e cantadas. Igualmente original por conta de seu híbrido de samba, jazz, funk, rock e pop, o segundo álbum do trio carioca Azymuth, Águia Não Come Mosca (1977), volta ao catálogo em reedição que traz no encarte texto escrito por Gavin sobre a trajetória do grupo. O sucesso do disco é Vôo Sobre o Horizonte, tema propagado na trilha sonora da novela Locomotivas (TV Globo, 1977). Do acervo internacional da Atlantic Records, a Coleção Cultura disponibiliza Hair Is Beautiful (1969), álbum em que o guitarrista e arranjador norte-americano de jazz Barney Kessel (1923 - 2004) apresenta releitura instrumental da trilha sonora do espetáculo Hair, símbolo teatral da era da contracultura e do movimento Hippie. Cheio de grooves urdidos com as liberdades estéticas da fusion (a mistura pop de rock, jazz e funk), Love Island (1978) é o primeiro álbum gravado pelo pianista e maestro brasileiro Eumir Deodato para a Warner Music. Na época da gravação do disco, Deodato já era nome cultuado na cena musical estrangeira, inclusive por conta da herança da Bossa Nova, música da qual o flautista norte-americano Herbie Mann (1930 - 2003) se apropriou no álbum Herbie Mann & João Gilberto with Antonio Carlos Jobim (1966), gravado no Rio de Janeiro (RJ), terra natal da bossa, com as presenças ilustres dos dois papas do gênero, João (no violão e nos vocais) e um certo Mr. Jobim (arranjador, solista de One Note Samba). É a mesma bossa que fascinou o cantor, compositor e baterista Jon Hendricks a ponto de ele, cinco anos antes de Mann, gravar disco intitulado Salud! João Gilberto (1961), ora reeditado na Coleção Cultura. Em outra trilha, de sotaque mais pop jazzístico, The Music From Siesta é o disco de 1987 que reúne os temas compostos por Marcus Milles (e gravados com ninguém menos do que Miles Davis) para o primeiro filme da videomaker Mary Lamber. De volta à bossa e ao suingue brasileiro, In Person at El Matador (1966) é o sexto álbum do pianista brasileiro Sergio Mendes - já idolatrado nos Estados Unidos naquela época por decodificar com propriedade o balanço nacional para os ouvidos norte-americanos - enquanto Zabumbê-Bum-Á (1979) - primeiro álbum de Hermeto Pascoal para a Warner - flagra o espírito lúdico de Bruxo entre dissonâncias e improvisos criados a partir dos ritmos nordestinos. Por fim, a Coleção Cultura traz de volta ao catálogo um dos discos mais cultuados de Tom Zé, Todos os Olhos (1973). Quarto álbum do baiano tropicalista, Todos os Olhos apresentou o samba Augusta, Angélica e Consolação - hoje no repertório de cantoras moderninhas - entre temas experimentais. Sim, disco pode ser cultura.

Anônimo disse...

Sensacional esse trabalho do Gavin de relançar com capricho discos valiosos. Paga todas as desgraças que ele gravou com Titãs do acústico em diante.
Vc tá salvo, cara! rsrrs
Quanto a coleção, confesso que me interessei mais pelos títulos da primeira leva.
Que venham a terceira, a quarta...

PS: Ótimo Natal a todos os frequentadores e ao dono do blog.
Ahh, Mauro, resenha o disco do Bid, pô.
O cara fez uma mistura sensacional da Jamaica com o Nordeste.

KL disse...

o único 'defeito' dessa série maravilhosa é vir num formato semelhante ao digipack, aspecto que, de modo algum (a não ser para poucos, como eu) interferirá na experiência deslumbrante de mergulhar em alguns dos melhores álbuns já produzidos e arranjados em todos os tempos. A edição em LP original de Arthur Verocai - uma verdadeira lenda mundo afora - é um dos cinco discos mais caros e raros do planeta, recentemente vendido por 5 mil dólares num famoso site de leilões internacional. Motivo? Genialidade e brihantismo de fato, só isso. Por que ninguém o conhece no Brasil? Porque se dá muito espaço (indevido) a uns em detrimento de outros, é a velha história do poder econômico e ideológico decidindo os rumos da cultura.
Em resumo, essa coleção vale cada centavo, e daqui já seguem os meus parabéns para o querido amigo Charles Gavin. Aleluia!

KL disse...

completando: além da música original de qualidade, convém atentar para a arte gráfica das capas. Prestem atenção na diferença gritante entre uma e outra, refletindo também a diferença na concepção sonora de cada álbum; essas capas são tão plasticamente superiores e impactantes que algumas poderiam estar penduradas em grandes museus de arte moderna. Ao contrário das de agora, todas praticamente iguais, com as mesmas expressões (falsamente) blasé, trabalhadas no Photoshop. Seria para estarem no mesmo nível (pífio) do conteúdo? Reflitamos.

KL disse...

E, por falar no grande - e ainda não celebrado como tal - Vitor Martins, é dele a letra de uma das canções mais lindas do álbum de Arthur Verocai, chamada "Caboclo", poesia do mais alto gabarito:

'Caboclo, quando sai, acorda o sol pela manhã,
Planta algodão, planta nuvens pelo chão.
À noite, quando volta, traz estrelas num bornal,
Cofres do sertão, que semeia no quintal.'