Mauro Ferreira no G1

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domingo, 2 de março de 2014

'Encarnado', CD incisivo de Juçara, jorra sangue novo ao encarar a morte

Resenha de CD
Título: Encarnado
Artista: Juçara Marçal
Gravadora: Edição independente da artista
Cotação: * * * * *
Disco disponível para download no site oficial da artista

Disco solo de Juçara Marçal, cantora do grupo paulistano Metá Metá, Encarnado jorra sangue novo na música brasileira ao encarar a morte, mote deste álbum desnorteante, angustiante, incisivo, contundente. Disco gravado em novembro de 2013 no estúdio El Rocha, em São Paulo (SP), Encarnado enfia a navalha na carne no toque cortante das guitarras de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, músicos fundamentais na construção da arquitetura das 12 faixas do álbum. Campos toca também cavaquinho. A crueza da sonoridade extraída das cordas - das quais faz parte também a rabeca de Thomas Rhorer - sublinha o tom rascante dos versos decididos. Sem piedade, sem dó, como pedem as letras da inédita Velho amarelo (Rodrigo Campos) - música sobre a finitude que escancara as vísceras de Encarnado já na abertura do disco - e de Damião (Douglas Germano e Everaldo Ferreira da Silva), música já lançada por Douglas Germano no álbum Ori (2011), mas que soa como inédita, deixando Encarnado no fio da navalha embebida em sede de vingança, já que os versos imaginam a revanche raivosa de Damião Ximenes Lopes, cearense morto, em outubro de 1999, por conta de espancamento e maus tratos sofridos na Casa de Repouso Guararapes, em Sobral (CE), aonde tinha sido internado com transtornos mentais. "Dá neles, Damião! / Mira no meio da cara / Dá com pé, com pau, com vara / Bate até virar a cara da nação", canta Juçara na faixa dedicada a Damião. É um canto movido a ódio indignado. "Ódio que pega como planta que se rega", como poetiza Tom Zé, compositor de Não tenha ódio do verão, música do álbum Tropicália lixo lógico (2008) revivida com propriedade por Juçara no CD. Encarnado tira sujeiras debaixo do tapete com som quente, sujo, direto. Inédita de Romulo Fróes e Alice Coutinho de cuja letra foi extraído o título Encarnado, Queimando a língua mantém a temperatura febril do álbum. Nesse clima abrasivo, Pena mais que perfeita (Gui Amabis e Regis Damasceno), música registrada por Amabis no disco Trabalhos carnívoros (2012), preserva o ponto de fervura no toque da rabeca de Rhorer e no tempo mais delicado do canto de Marçal. Que parece imerso em águas turvas na faixa-vinheta Odoyá, tema da lavra própria da cantora e compositora. Na sequência, a Ciranda do aborto, inédita de Kiko Dinucci, passa novamente a navalha na carne, expondo as vísceras que tornam Encarnado um dos discos mais vitais dos últimos tempos. O toque das guitarras sublinham o estrago feito no corpo e na alma. Com a ferida aberta e as fraturas expostas, Canção pra ninar Oxum tenta estancar as lágrimas em tom acariciante. Mas a vida é susto constante. E o Quico? - música de Itamar Assumpção (1949 - 2003), lançada pelo Nego Dito no álbum Sampa midnight (1983) -  assombra com sua sintonia com o espírito de Encarnado. E a morte volta a espreitar na forma tradicional d'A velha da capa preta (Siba Veloso), música do álbum Todo vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar (2007), de Siba, que exala certo sarcasmo ao lembrar que a morte já pode se aposentar, deixando a humanidade matando em seu lugar. Ou se deixando morrer. Afinal, Presente de casamento (Thiago França e Romulo Fróes) lembra que as pessoas e as uniões afetivas morrem em vida. No fim, um samba de levada tradicional, à moda do cadência paulistana do samba do compositor Adoniran Barbosa (1910 - 1982), João Carranca (de Kiko Dinucci) faz outra crônica da morte, ressaltando no arremate de Encarnado que o belo pode vir a espantar. Como este disco de Juçara Marçal, que talvez não seja exatamente um disco solo porque toda a beleza vem do diálogo cortante do canto da intérprete com as guitarras cruas, quase punks, de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, ambos tão importantes quanto Juçara para o alcance da perfeição do álbum, já na lista de melhores de 2014. A morte cai esplendidamente bem em Encarnado

6 comentários:

Mauro Ferreira disse...

Disco solo de Juçara Marçal, cantora do grupo paulistano Metá Metá, Encarnado jorra sangue novo na música brasileira ao encarar a morte, mote deste álbum desnorteante, incisivo, contundente. Gravado em novembro de 2013 no estúdio El Rocha, em São Paulo (SP), Encarnado enfia a navalha na carne no toque cortante das guitarras de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, músicos fundamentais na construção da arquitetura das 12 faixas do álbum. Campos toca também cavaquinho. A crueza da sonoridade extraída das cordas - das quais faz parte também a rabeca de Thomas Rhorer - sublinha o tom rascante dos versos decididos. Sem piedade, sem dó, como pedem as letras da inédita Velho amarelo (Rodrigo Campos) - música sobre a finitude que escancara as vísceras de Encarnado já na abertura do disco - e de Damião (Douglas Germano e Everaldo Ferreira da Silva), música já lançada por Douglas Germano no álbum Ori (2011), mas que soa como inédita, deixando Encarnado no fio da navalha embebida em sede de vingança, já que os versos imaginam a revanche raivosa de Damião Ximenes Lopes, cearense morto, em outubro de 1999, por conta de espancamento e maus tratos sofridos na Casa de Repouso Guararapes, em Sobral (CE), aonde tinha sido internado com transtornos mentais. "Dá neles, Damião! / Mira no meio da cara / Dá com pé, com pau, com vara / Bate até virar a cara da nação", canta Juçara na faixa dedicada a Damião. É um canto movido a ódio indignado. "Ódio que pega como planta que se rega", como poetiza Tom Zé, compositor de Não tenha ódio do verão, música do álbum Tropicália lixo lógico (2008) revivida com propriedade por Juçara no CD. Encarnado tira sujeiras debaixo do tapete com som quente, sujo, direto. Inédita de Romulo Fróes e Alice Coutinho de cuja letra foi extraído o título Encarnado, Queimando a língua mantém a temperatura febril do álbum. Nesse clima abrasivo, Pena mais que perfeita (Gui Amabis e Regis Damasceno), música registrada por Amabis no disco Trabalhos carnívoros (2012), preserva o ponto de fervura no toque da rabeca de Rhorer e no tempo mais delicado do canto de Marçal. Que parece imerso em águas turvas na faixa-vinheta Odoyá, tema da lavra própria da cantora e compositora. Na sequência, a Ciranda do aborto, inédita de Kiko Dinucci, passa novamente a navalha na carne, expondo as vísceras que tornam Encarnado um dos discos mais vitais dos últimos tempos. O toque das guitarras sublinham o estrago feito no corpo e na alma. Com a ferida aberta e as fraturas expostas, Canção pra ninar Oxum tenta estancar as lágrimas em tom acariciante. Mas a vida é susto constante. E o Quico? - música de Itamar Assumpção (1949 - 2003), lançada pelo Nego Dito no álbum Sampa midnight (1983) - assombra com sua sintonia com o espírito de Encarnado. E a morte volta a espreitar na forma tradicional d'A velha capa preta (Siba Veloso), música do álbum Todo vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar (2007), de Siba, que exala certo sarcasmo ao lembrar que a morte já pode se aposentar, deixando a humanidade matando em seu lugar. Ou se deixando morrer. Afinal, Presente de casamento (Thiago França e Romulo Fróes) lembra que as pessoas e as uniões afetivas morrem em vida. No fim, um samba de levada tradicional, à moda do cadência paulistana do samba do compositor Adoniran Barbosa (1910 - 1982), João Carranca (de Kiko Dinucci) faz outra crônica da morte, ressaltando no arremate de Encarnado que o belo pode vir a espantar. Como este disco de Juçara Marçal, que talvez não seja exatamente um disco solo porque toda a beleza vem do diálogo cortante do canto da intérprete com as guitarras cruas, quase punks, de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, ambos tão importantes quanto Juçara para o alcance da perfeição do álbum, já na lista de melhores de 2014. A morte cai esplendidamente bem em Encarnado.

Fabio disse...

Acho que preciso escutar muitas vezes mais esse CD. Achei chaaaaaaaaaaaaaaaaaato demais.

Pedro Progresso disse...

é punk mesmo. e vital!
esse é o disco que eu esperava de Juçara e é até mais. não é pra ouvir descontraído, música ambiente, nada disso. ainda bem.

Anônimo disse...

Mulher extraordinária, disco maravilhoso.

lurian disse...

Disco ousado, não é de digestão fácil, mas mostra que mesmo com temática dificil um disco pode ser muito bom.

Unknown disse...

Mauro, você tem sido responsável pela minha (re)educação musical.

Sempre indicando bons álbuns e estimulando à boa música!

Graças a você conheci Jussara Marçal... depois Metá Metá e, consequentemente, desencadeou em todos os outros trabalhos desta maravilhosa artista.

Obrigado por mostrar que, embora bem escondido, o Brasil ainda tem excelentes cantores e compositores!

Abraços, meu querido!