Mauro Ferreira no G1

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quarta-feira, 26 de março de 2014

Gil sustenta leveza genial de João em CD que sintetiza a música do Brasil

Resenha de CD
Título: Gilbertos samba
Artista: Gilberto Gil
Gravadora: Sony Music
Cotação: * * * * *

"Aparece a cada cem anos um mestre da canção no país /  ... / E a cada vinte e cinco um aprendiz", contabiliza Gilberto Gil em versos de Gilbertos, samba inédito de sua autoria, composto para arrematar Gilbertos samba, álbum em que o cantor, compositor e músico baiano celebra o legado de seu conterrâneo João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, baiano genial que deu choque de ordem na música brasileira em 1958 ao sintetizar a cadência do samba na batida diferente de seu violão, em revolução estética rotulada como Bossa Nova. Já a caminho dos 83 anos, João é o mestre que bebeu nas águas de outros mestres que o antecederam, como o compositor (também) baiano Dorival Caymmi (1914 - 2008), não por acaso citado por Gil em verso de Gilbertos, samba gravado com o toque do violão de Dori Caymmi neste disco primoroso que tem lançamento agendado para a próxima terça-feira, 1º de abril de 2014. Gilbertos samba mostra que, de embevecido aprendiz de João, Gil se transformou ele próprio em mestre. Produzido por Bem Gil e Moreno Veloso, sob a direção musical do próprio Gilberto Gil, o CD Gilbertos samba sustenta a leveza genial de João - sem cair na tentação vã de reproduzir o som e o canto irreproduzíveis do artista que reverencia - e, de certa forma, sintetiza em suas 12 faixas os caminhos trilhados pela música brasileira ao longo de quase cem anos. Estão em perfeita harmonia no disco alguns sambas da fase pré-Bossa Nova, a própria Bossa Nova (representada por alguns standards do gênero e pela própria presença simbólica de seu papa João), a voz e o violão de Gil - símbolos emblemáticos da MPB cristalizada na era pós-bossa dos festivais dos anos 1960 - e músicos que, a partir dos anos 2000, fizeram uma revolução silenciosa na música brasileira, renovando timbres e sonoridades. A integração desses elementos - ajustados num todo harmônico que honra o legado de João - faz com que Gilbertos samba seja sedutora "experiência de densa textura histórica", como conceitua Caetano Veloso no preciso texto reproduzido no encarte do disco, que vai ser lançado em CD e no formato de vinil. Somente a inserção em Desafinado (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça, 1959) - hino da bossa depurado por João em seu álbum Chega de saudade (Odeon, 1959) - dos efeitos e ruídos da guitarra de Pedro Sá já garante ao disco um papel histórico na música brasileira. Porque nada soa fora da ordem ou de lugar em Gilbertos samba. Ao contrário: tudo soa rigorosamente em seu devido lugar - como em qualquer gravação de João, aliás. Já na primeira faixa do disco, Aos pés da cruz (Marino Pinto e Zé da Zilda, 1942), samba purificado por João no seu histórico primeiro álbum de 1959, salta aos ouvidos a coesão do arranjo da gravação. A voz de Gil e o toque de seu violão - de uma bossa toda própria - se harmonizam com a suave percussão eletrônica de Domenico Lancellotti. Nada sobra. Nada falta. Na sequência, Eu sambo mesmo (Janet de Almeida, 1946) - música que soou como carta de princípios na abertura do álbum João (PolyGram, 1991) e que uma geração mais nova conheceu na voz de Roberta Sá - reitera o acerto de Gil. O toque sutil da flauta de Danilo Caymmi sublinha a sensação de que músicos e cantor trabalharam unicamente a serviço da canção, como ensinou o mestre João. Mesmo quando os arranjos são encorpados com sopros e cordas - como em Você e eu (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, 1961), samba lançado no álbum João Gilberto (Odeon, 1961) - a leveza é senhora neste disco em que Gil dá voz a Desde que o samba é samba (Caetano Veloso, 1993), tema que abriu o álbum João, voz e violão (Universal Music, 2000). Dentro dessa atmosfera harmoniosa, O pato (Jaime Silva e Neusa Teixeira, 1960) volta a fazer qüen qüen com propriedade. Desde o fim dos anos 1940, este samba fazia parte do repertório dos Garotos da Lua, grupo carioca do qual João foi crooner, mas ficou definitivamente associado a João por conta da gravação do LP O amor, o sorriso e a flor (Odeon, 1960). Deste segundo álbum de João, Gil pescou também Doralice (1945), samba feito por Dorival Caymmi em parceria com o compositor carioca Antonio Almeida (1911 - 1985) e lançado em agosto de 1945 pelo conjunto Anjos do Inferno, do qual João é devoto. Na abordagem de Gilbertos samba, Doralice ganha também o toque do acordeom de Mestrinho e a pulsação do violino de Nicolas Krassik sem que um instrumento queira ser mais importante do que o outro. Completando o naipe de faixas que envolvem Caymmi e seu legado perpetuado pelos filhos Danilo e Dori, Milagre (Dorival Caymmi, 1977) é cortado pela faca e pelo prato de Moreno Veloso em evocação do samba da terra natal que o baiano Caymmi mitificou em sua obra. Fazer Milagre (Dorival Caymmi, 1977) em Gilbertos samba tem sentido pelo fato de o tema remeter à união de João com Gil e com Caetano Veloso no disco Brasil (Warner Music, 1981). É como se Gil estivesse simultaneamente trilhando os caminhos que deram na bossa de João e os caminhos que, a partir de João, deram em Gil. Ambientado em clima de samba-choro, o tema instrumental Um abraço no João (Gilberto Gil, 1997) é elo com Um abraço no Bonfá, música que João Gilberto compôs e que gravou em 1960 para saudar o compositor e violonista carioca Luiz Bonfá (1922 - 2001). A busca pelo essencial da canção faz com que o samba Tim tim por tim tim (Haroldo Barbosa e Geraldo Jacques, 1951) - gravado por João no seu melhor álbum pós-Bossa Nova, Amoroso (Warner Music, 1977) - permaneça em sintonia com o universo do samba mesmo quando se ouve o triângulo percutido por Rodrigo Amarante, em eco do legado do mestre Luiz Gonzaga (1912-1989). Com a voz em registros normalmente graves, Gil parece amarrar todas as pontas de sua estrela quando volta ao seu samba Eu vim da Bahia, lançado por Gal Costa em 1965 e revivido por João Gilberto em álbum de 1973. Toda a dimensão histórica de Gilbertos samba - grande álbum do aprendiz que virou mestre - fica explícita com a nova abordagem de Eu vim da Bahia, feito quando Gil já absorvia as lições de João. O reencontro dos Gilbertos deu samba.

10 comentários:

Mauro Ferreira disse...

"Aparece a cada cem anos um mestre da canção no país / ... / E a cada vinte e cinco um aprendiz", contabiliza Gilberto Gil em versos de Gilbertos, samba inédito de sua autoria, composto para arrematar Gilbertos samba, álbum em que o cantor, compositor e músico baiano celebra o legado de seu conterrâneo João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, baiano genial que deu choque de ordem na música brasileira em 1958 ao sintetizar a cadência do samba na batida diferente de seu violão, em revolução estética rotulada como Bossa Nova. Já a caminho dos 83 anos, João é o mestre que bebeu nas águas de outros mestres que o antecederam, como o compositor (também) baiano Dorival Caymmi (1914 - 2008), não por acaso citado por Gil em verso de Gilbertos, samba gravado com o toque do violão de Dori Caymmi neste disco primoroso que tem lançamento agendado para a próxima terça-feira, 1º de abril de 2014. Gilbertos samba mostra que, de embevecido aprendiz de João, Gil se transformou ele próprio em mestre. Produzido por Bem Gil e Moreno Veloso, sob a direção musical do próprio Gilberto Gil, o CD Gilbertos samba sustenta a leveza genial de João - sem cair na tentação vã de reproduzir o som e o canto irreproduzíveis do artista que reverencia - e, de certa forma, sintetiza em suas 12 faixas os caminhos trilhados pela música brasileira ao longo de quase cem anos. Estão em perfeita harmonia no disco alguns sambas da fase pré-Bossa Nova, a própria Bossa Nova (representada por alguns standards do gênero e pela própria presença simbólica de seu papa João), a voz e o violão de Gil - símbolos emblemáticos da MPB cristalizada na era pós-bossa dos festivais dos anos 1960 - e músicos que, a partir dos anos 2000, fizeram uma revolução silenciosa na música brasileira, renovando timbres e sonoridades. A integração desses elementos - ajustados num todo harmônico que honra o legado de João - faz com que Gilbertos samba seja sedutora "experiência de densa textura histórica", como conceitua Caetano Veloso no preciso texto reproduzido no encarte do disco, que vai ser lançado em CD e no formato de vinil. Somente a inserção em Desafinado (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça, 1959) - hino da bossa depurado por João em seu álbum Chega de saudade (Odeon, 1959) - dos efeitos e ruídos da guitarra de Pedro Sá já garante ao disco um papel histórico na música brasileira. Porque nada soa fora da ordem ou de lugar em Gilbertos samba. Ao contrário: tudo soa rigorosamente em seu devido lugar - como em qualquer gravação de João, aliás. Já na primeira faixa do disco, Aos pés da cruz (Marino Pinto e Zé da Zilda, 1942), samba purificado por João no seu histórico primeiro álbum de 1959, salta aos ouvidos a coesão do arranjo da gravação. A voz de Gil e o toque de seu violão - de uma bossa toda própria - se harmonizam com a suave percussão eletrônica de Domenico Lancellotti. Nada sobra. Nada falta. Na sequência, Eu sambo mesmo (Janet de Almeida, 1946) - música que soou como carta de princípios na abertura do álbum João (PolyGram, 1991) e que uma geração mais nova conheceu na voz de Roberta Sá - reitera o acerto de Gil. O toque sutil da flauta de Danilo Caymmi sublinha a sensação de que músicos e cantor trabalharam unicamente a serviço da canção, como ensinou o mestre João. Mesmo quando os arranjos são encorpados com sopros e cordas - como em Você e eu (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, 1961), samba lançado no álbum João Gilberto (Odeon, 1961) - a leveza é senhora neste disco em que Gil dá voz a Desde que o samba é samba (Caetano Veloso, 1992), tema que abriu o álbum João, voz e violão (Universal Music, 2000).

Mauro Ferreira disse...

Dentro dessa atmosfera harmoniosa, O pato (Jaime Silva e Neusa Teixeira, 1960) volta a fazer qüen qüen com propriedade. Desde o fim dos anos 1940, este samba fazia parte do repertório dos Garotos da Lua, grupo carioca do qual João foi crooner, mas ficou definitivamente associado a João por conta da gravação do LP O amor, o sorriso e a flor (Odeon, 1960). Deste segundo álbum de João, Gil pescou também Doralice (1945), samba feito por Dorival Caymmi em parceria com o compositor carioca Antonio Almeida (1911 - 1985) e lançado em agosto de 1945 pelo conjunto Anjos do Inferno, do qual João é devoto. Na abordagem de Gilbertos samba, Doralice ganha também o toque do acordeom de Mestrinho e a pulsação do violino de Nicolas Krassik sem que um instrumento queira ser mais importante do que o outro. Completando o naipe de faixas que envolvem Caymmi e seu legado perpetuado pelos filhos Danilo e Dori, Milagre (Dorival Caymmi, 1977) é cortado pela faca e pelo prato de Moreno Veloso em evocação do samba da terra natal que o baiano Caymmi mitificou em sua obra. Fazer Milagre (Dorival Caymmi, 1977) em Gilbertos samba tem sentido pelo fato de o tema remeter à união de João com Gil e com Caetano Veloso no disco Brasil (Warner Music, 1981). É como se Gil estivesse simultaneamente trilhando os caminhos que deram na bossa de João e os caminhos que, a partir de João, deram em Gil. Ambientado em clima de samba-choro, o tema instrumental Um abraço no João (Gilberto Gil, 1997) é elo com Um abraço no Bonfá, música que João Gilberto compôs e que gravou em 1960 para saudar o compositor e violonista carioca Luiz Bonfá (1922 - 2001). A busca pelo essencial da canção faz com que o samba Tim tim por tim tim (Haroldo Barbosa e Geraldo Jacques, 1951) - gravado por João no seu melhor álbum pós-Bossa Nova, Amoroso (Warner Music, 1977) - permaneça em sintonia com o universo do samba mesmo quando se ouve o triângulo percutido por Rodrigo Amarante, em eco do legado do mestre Luiz Gonzaga (1912-1989). Com a voz em registros normalmente graves, Gil parece amarrar todas as pontas de sua estrela quando volta ao seu samba Eu vim da Bahia, lançado por Gal Costa em 1965 e revivido por João Gilberto em álbum de 1973. Toda a dimensão histórica de Gilbertos samba - grande álbum do aprendiz que virou mestre - fica explícita com a nova abordagem de Eu vim da Bahia, feito quando Gil já absorvia as lições de João. O encontro dos Gilbertos deu samba.

Rubens Lisboa disse...

Texto lindo, Mauro. Parabéns!

Rubens Lisboa disse...

Texto lindo, Mauro. Parabéns!

Ronaldo disse...

Texto perfeito! Vamos aguardar o CD. Grande expectativa.

Felipe dos Santos disse...

"(...)De embevecido aprendiz de João, Gil se transformou ele próprio em mestre."

É só. E é tudo. A resenha podia ter ficado aí que já resumia as coisas.

Felipe dos Santos Souza

Felipe dos Santos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Felipe dos Santos disse...

b

Rafael disse...

O do Gil ainda não ouvi, mas pela faixa "Você E Eu" achei fantástica a interpretação minimalista dele. Ainda vou comprar o CD, apesar de achar "Gilbertos Samba" um nome muito feio, deveria ter ficado mesmo "João Gilberto Gil", mais impactante e bonito. Sempre sonhei desde criança num disco do Gil dedicado a João, mas com o nome de "João Gilberto Gil", mas infelizmente não deu. Nem tudo é perfeito e como a gente quer... Paciência...

anônimo disse...

ótima RESENHA, pedi de presente de aniversário o Cd, agora é aguardar e vida longa aos Gilbertos!!!!