Mauro Ferreira no G1

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domingo, 19 de outubro de 2014

Juçara, Kiko e Suzana glorificam Itamar ao destilar ironias do 'Nego Dito'

Resenha de show
Título: Juçara Marçal, Suzana Salles e Kiko Dinucci cantam Itamar
Artista: Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Suzana Salles (em foto de Rodrigo Goffredo)
Local: Audio Rebel
Data: 17 de outubro de 2014
Cotação: * * * *


♪ Às próprias custas, pagando preço alto por fazer valer vontades e coerência na construção de sua obra, o cantor e compositor paulista Itamar Assumpção (1949 - 2003) pavimentou trilha que o tem levado à consagração póstuma. Quando brinca ao dizer no palco do Audio Rebel que está fundando com Juçara Marçal e Suzana Salles a Igreja Itamar Assumpção, o cantor e compositor Kiko Dinucci - expoente da cena paulistana dos anos 2010 - talvez  fale mais sério do que supõe.  A obra mundana do Nego dito repousa atualmente em altar sagrado. Shows e discos recentes - como a obra-prima Tudo esclarecido (Warner Music, 2012), álbum em que Zélia Duncan mostrou o quanto o cancioneiro de Itamar pode ser pop e popular - vem evidenciando a força dessa obra que profanou convenções sociais com sagacidade e humor mordaz. Ao se juntar em cena com Juçara Marçal e Suzana Salles para destilar as finas ironias do cancioneiro do artista, em show que chegou ao Rio de Janeiro (RJ) em 16 e 17 de outubro de 2014, Kiko glorifica Itamar ao lado das cantoras paulistanas. É um show de três vozes e um violão (o tocado pelo próprio Kiko), suficientes para expor a grandeza atemporal dessa obra tão paulistana e tão universal ao longo de roteiro que enfileira 19 músicas de Itamar, lançadas entre 1980 e 2010, em amplo arco do tempo que abarca exatas três décadas. Roteiro que surpreende e que expõe a coerência e sintonia existentes entre as duas músicas de 1980 -  a muito conhecida Nego Dito e a pouco ouvida Nega Música, ambas lançadas no seminal álbum Beleléu leléu eu (Lira Paulistana,1980) -  e as cinco de 2010 (registradas pelo autor nos póstumos segundo e terceiro volumes da trilogia Preto Brás). A própria formação do show atesta a perenidade da obra. O cancioneiro de Itamar se ajusta tanto à voz original de Suzana Salles - cantora desde sempre associada a Itamar e a Arrigo Barnabé por sua atuação no movimento dos anos 1980 rotulado como Vanguarda Paulista - como às vozes mais recentes de Juçara Marçal e de Kiko Dinucci. Vozes que tem se feito ouvir na efervescente cena paulistana que recolocou São Paulo no mapa musical do Brasil do século 21. Em cena, o trio se afina e demole barreiras temporais, fiel à estética vocal implantada por Itamar, Arrigo e colegas da Lira Paulistana. Já nos dois primeiros números do show, Prezadíssimos ouvintes (Itamar Assumpção e Domingos Pellegrini, 1986) e Navalha na liga (Itamar Assumpção e Alice Ruiz, 1986), ecoa o canto teatralizado, quase falado, proposto pela turma vanguardista dos anos 1980. Por mais que haja solos, como o de Suzana em Anteontem (Melô da UTI) (Itamar Assumpção, 2010) e o de Juçara em Je t'aime mais que o Jerome (Itamar Assumpção, 2010), é na interação vocal e gestual entre o trio que se escora o show Juçara Marçal, Suzana Salles e Kiko Dinucci cantam Itamar. Além das vozes, cabem caras, bocas e poses para realçar o humor mordaz e os sentimentos entranhados no cancioneiro de Itamar. É entortando vozes e caras que o trio expôs toda a piração de Pirex (Itamar Assumpção, 2007), a infecção amorosa que contamina Ciúme doentio (Itamar Assumpção, 2010) e o jogo de palavras armado nos versos de Más línguas (Itamar Assumpção, 2010), o número interativo do show. Mas nem tudo é ironia no cancioneiro de Itamar. Às vezes, tudo também pode se harmonizar com suavidade e afeto na obra desse compositor que também deixou "coisas fofinhas", como caracterizou Dinucci antes de o trio dar voz a Apaixonite aguda (Itamar Assumpção, 1998). Mais para o fim, Zé Pelintra - bissexta parceria de Itamar com o poeta baiano Waly Salomão (1943 - 2003) - baixou com força no palco do Audio Rebel, expondo a intimidade e o total domínio vocal com que Suzana Salles revisita esse cancioneiro. Contudo, o show é do trio que, fazendo jus ao clima de Sampa midnight (Itamar Assumpção, 1986), cantou "De trás pra diante / Letras fortes, indecentes / Música bem excitantes", pondo Itamar Assumpção nas alturas e convertendo o fiel público do Audio Rebel - cenário de grande movimentação na cena indie carioca - ao que há de mais sagrado e de mais profano na consagrada música de Beleléu

2 comentários:

Mauro Ferreira disse...

♪ Às próprias custas, pagando preço alto por fazer valer vontades e coerência na construção de sua obra, o cantor e compositor paulista Itamar Assumpção (1949 - 2003) pavimentou trilha que o tem levado à consagração póstuma. Quando brinca ao dizer no palco do Audio Rebel que está fundando com Juçara Marçal e Suzana Salles a Igreja Itamar Assumpção, o cantor e compositor Kiko Dinucci - expoente da cena paulistana dos anos 2010 - talvez fale mais sério do que supõe. A obra mundana do Nego dito repousa atualmente em altar sagrado. Shows e discos recentes - como a obra-prima Tudo esclarecido (Warner Music, 2012), álbum em que Zélia Duncan mostrou o quanto o cancioneiro de Itamar pode ser pop e popular - vem evidenciando a força dessa obra que profanou convenções sociais com sagacidade e humor mordaz. Ao se juntar em cena com Juçara Marçal e Suzana Salles para destilar as finas ironias do cancioneiro do artista, em show que chegou ao Rio de Janeiro (RJ) em 16 e 17 de outubro de 2014, Kiko glorifica Itamar ao lado das cantoras paulistanas. É um show de três vozes e um violão (o tocado pelo próprio Kiko), suficientes para expor a grandeza atemporal dessa obra tão paulistana e tão universal ao longo de roteiro que enfileira 19 músicas de Itamar, lançadas entre 1980 e 2010, em amplo arco do tempo que abarca exatas três décadas. Roteiro que surpreende e que expõe a coerência e sintonia existentes entre as duas músicas de 1980 - a muito conhecida Nego Dito e a pouco ouvida Nega Música, ambas lançadas no seminal álbum Beleléu leléu eu (Lira Paulistana,1980) - e as cinco de 2010 (registradas pelo autor nos póstumos segundo e terceiro volumes da trilogia Preto Brás). A própria formação do show atesta a perenidade da obra. O cancioneiro de Itamar se ajusta tanto à voz original de Suzana Salles - cantora desde sempre associada a Itamar e a Arrigo Barnabé por sua atuação no movimento dos anos 1980 rotulado como Vanguarda Paulista - como às vozes mais recentes de Juçara Marçal e de Kiko Dinucci. Vozes que tem se feito ouvir na efervescente cena paulistana que recolocou São Paulo no mapa musical do Brasil do século 21.

Mauro Ferreira disse...

Em cena, o trio se afina e demole barreiras temporais, fiel à estética vocal implantada por Itamar, Arrigo e colegas da Lira Paulistana. Já nos dois primeiros números do show, Prezadíssimos ouvintes (Itamar Assumpção e Domingos Pellegrini, 1986) e Navalha na liga (Itamar Assumpção e Alice Ruiz, 1986), ecoa o canto teatralizado, quase falado, proposto pela turma vanguardista dos anos 1980. Por mais que haja solos, como o de Suzana em Anteontem (Melô da UTI) (Itamar Assumpção, 2010) e o de Juçara em Je t'aime mais que o Jerome (Itamar Assumpção, 2010), é na interação vocal e gestual entre o trio que se escora o show Juçara Marçal, Suzana Salles e Kiko Dinucci cantam Itamar. Além das vozes, cabem caras, bocas e poses para realçar o humor mordaz e os sentimentos entranhados no cancioneiro de Itamar. É entortando vozes e caras que o trio expôs toda a piração de Pirex (Itamar Assumpção, 2007), a infecção amorosa que contamina Ciúme doentio (Itamar Assumpção, 2010) e o jogo de palavras armado nos versos de Más línguas (Itamar Assumpção, 2010), o número interativo do show. Mas nem tudo é ironia no cancioneiro de Itamar. Às vezes, tudo também pode se harmonizar com suavidade e afeto na obra desse compositor que também deixou "coisas fofinhas", como caracterizou Dinucci antes de o trio dar voz a Apaixonite aguda (Itamar Assumpção, 1998). Mais para o fim, Zé Pelintra - bissexta parceria de Itamar com o poeta baiano Waly Salomão (1943 - 2003) - baixou com força no palco do Audio Rebel, expondo a intimidade e o total domínio com que Suzana Salles revisita esse cancioneiro. Contudo, o show é do trio que, fazendo jus ao clima de Sampa midnight (Itamar Assumpção, 1986), cantou "De trás pra diante / Letras fortes, indecentes / Música bem excitantes", pondo Itamar Assumpção nas alturas e convertendo o fiel público do Audio Rebel - cenário de grande movimentação na cena indie carioca - ao que há de mais sagrado e de mais profano na consagrada música de Beleléu.