Mauro Ferreira no G1

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sexta-feira, 25 de julho de 2014

Em show no Rio, Bravo adensa a raiva dos que levantaram a voz contra 1964

Resenha de show
Evento: Arte e autoritarismo em cena
Título: Apesar de você
Artista: Marya Bravo (em foto de Rodrigo Goffredo)
Local: Arena do Sesc Copacabana (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 24 de julho de 2014
Cotação: * * * *
 Show em cartaz até dia 25 de julho de 2014 no Sesc Copacabana, no Rio de Janeiro (RJ)

♪ Marcada por gritos contidos e sambas no escuro, a trilha sonora do Brasil dos anos rebeldes tem sua raiva adensada por Marya Bravo - em pegada hard roqueira - no show Apesar de você, apresentado esta semana na arena do Sesc Copacabana, no Rio de Janeiro (RJ), dentro do ciclo multimídia Arte e autoritarismo em cena, idealizado para lembrar os 50 anos do golpe militar que asfixiou o país em 1964. Samba cujo sucesso popular não conseguiu ser cortado pela tesoura cega dos censores da época de chumbo, Apesar de você (Chico Buarque, 1970) batiza e exemplifica o tom do show feito pela cantora carioca - conhecida do público frequentador de musicais de teatro - sob a direção de Cesar Augusto e a direção musical de Bruno Pederneiras, guitarrista fundamental para a construção da ambiência noise que envolve a maior parte dos 17 números musicais do show. Sem surpresas, o roteiro de Rodrigo Faour chega a ser óbvio ao alinhar músicas como Opinião (Zé Kétti, 1964) - samba cantado a capella por Bravo, na coxia, na abertura do show - e Cálice (Chico Buarque e Gilberto Gil, 1973). Mas é na forma inusitada com que Bravo aborda o previsível repertório que reside a força desse show seco, curto e grosso na medida em que não abre espaço para falas protocolares da cantora e tampouco oferece a oportunidade de um bis, (bem) substituído pela exposição, em off, da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Geralmente metafórico, por conta das circunstâncias limitadoras da época, o recado está nas letras dos compositores, arremessadas na cena em tons altos pela cantora, deixando na garganta um gosto amargo de fel, indignação e medo. Com voz potente lapidada nos palcos, Bravo desata os nós da garganta e liberta os gritos contidos em versos de músicas como Pesadelo (Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, 1972) e a Canção do medo (Toquinho e Gianfrancesco Guarnieri, 1973). Este tema da peça Botequim - estrelada pela cantora paulista Marlene (1922 - 2014) há 41 anos - é o título mais surpreendente do roteiro extraído do acervo da MPB produzida entre 1964 e 1978. Por ser também atriz, Bravo entende perfeitamente o texto das canções e geralmente tira o máximo proveito deles. O registro seco de Roda viva (Chico Buarque, 1968), o tom endiabrado de Demoníaca (Sueli Costa e Vítor Martins, 1974) - música imersa em atmosfera bluesy - e o ar pesado exalado por Gás neon (Gonzaguinha, 1974) sinalizam a força e a fúria da intérprete na abordagem de músicas igualmente fortes, já bem gravadas por cantoras densas como Maria Bethânia - de cujo repertório Bravo também rebobina Rosa dos ventos (Chico Buarque, 1971) em outros tons e divisões sem causar impacto com a abordagem - e Elis Regina (1945 - 1982), de cujo show Transversal do tempo (1978) é revivida a dobradinha formada por Meio termo (Lourenço Baeta e Cacaso, 1978) e Corpos (Ivan Lins e Vítor Martins, 1975).  Interpretações à parte, quando Marya Bravo canta Cartomante (Ivan Lins e Vitor Martins, 1977) -  música lançada por Elis - paira a certeza da inspiração dos compositores que levantaram suas vozes contra a ditadura. As melodias eram tão fortes quanto as letras. Diante desse repertório magistral, Bravo jamais se intimida. O único número dispensável do show é Divino maravilhoso (Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1968) pelo fato de a música soar em contexto roqueiro parecido com o da emblemática gravação de Gal Costa. No mais, ao sair de cena após dar todo o peso possível ao hino Comportamento geral (Gonzaguinha, 1972), Marya Bravo jamais deixa gritos parados no ar. Porque hoje já é outro dia...

Um comentário:

Mauro Ferreira disse...

Marcada por gritos contidos e sambas no escuro, a trilha sonora do Brasil dos anos rebeldes tem sua raiva adensada por Marya Bravo - em pegada hard roqueira - no show Apesar de você, apresentado esta semana na arena do Sesc Copacabana, no Rio de Janeiro (RJ), dentro do ciclo multimídia Arte e autoritarismo em cena, idealizado para lembrar os 50 anos do golpe militar que asfixiou o país em 1964. Samba cujo sucesso popular não conseguiu ser cortado pela tesoura cega pela ira dos censores da época, Apesar de você (Chico Buarque, 1970) batiza e exemplifica o tom do show feito pela cantora carioca - conhecida do público frequentador de musicais de teatro - sob a direção de Cesar Augusto e a direção musical de Bruno Pederneiras, guitarrista fundamental para a construção da ambiência noise que envolve a maior parte dos 16 números musicais do show. Sem surpresas, o roteiro de Rodrigo Faour chega a ser óbvio ao alinhar músicas como Opinião (Zé Kétti, 1964) - samba cantado a capella por Bravo, na coxia, na abertura do show - e Cálice (Chico Buarque e Gilberto Gil, 1973). Mas é na forma inusitada com que Bravo aborda o previsível repertório que reside a força desse show seco, curto e grosso na medida em que não abre espaço para falas da cantora e tampouco oferece a oportunidade de um bis, substituído pela exposição, em off, da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Geralmente metafórico, por conta das circunstâncias limitadoras da época, o recado está nas letras dos compositores, arremessadas na cena em tons altos pela cantora, deixando na garganta um gosto amargo de fel, indignação e medo. Com a voz potente que Deus lhe deu, Bravo desata os nós da garganta e liberta os gritos contidos em versos de músicas como Pesadelo (Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, 1972) e a Canção do medo (Toquinho e Gianfrancesco Guarnieri, 1973). Este tema da peça Botequim - estrelada pela cantora paulista Marlene (1922 - 2014) há 41 anos - é o título mais surpreendente do roteiro extraído do acervo da MPB produzida entre 1964 e 1978. Por ser também atriz, Bravo entende perfeitamente o texto das canções e geralmente tira o máximo proveito deles. O registro seco de Roda viva (Chico Buarque, 1968), o tom endiabrado de Demoníaca (Sueli Costa e Vítor Martins, 1974) - música imersa em atmosfera bluesy - e o ar pesado exalado por Gás neón (Gonzaguinha, 1974) sinalizam a força da intérprete na abordagem de músicas igualmente fortes, já gravadas por cantoras densas como Maria Bethânia - de cujo repertório Bravo também rebobina Rosa dos ventos (Chico Buarque, 1971) em outros tons e divisões - e Elis Regina (1945 - 1982), de cujo show Transversal do tempo (1978) é revivida a dobradinha formada por Meio termo (Lourenço Baeta e Cacaso, 1978) e Corpos (Ivan Lins e Vítor Martins, 1975). Interpretações à parte, quando Bravo canta Cartomante (Ivan Lins e Vitor Martins, 1977) - música lançada por Elis - paira a certeza da inspiração dos compositores que levantaram suas vozes contra a ditadura. As melodias eram tão fortes quanto as letras. Diante desse repertório magistral, Bravo jamais se intimida. O único número dispensável do show é Divino maravilhoso (Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1968) pelo fato de a música soar em contexto roqueiro parecido com o da emblemática gravação de Gal Costa. No mais, ao sair de cena após dar todo o peso possível a Comportamento geral (Gonzaguinha, 1973), Marya Bravo não deixa gritos parados no ar. Porque hoje já é outro dia.