Mauro Ferreira no G1

Aviso aos navegantes: desde 6 de julho de 2016, o jornalista Mauro Ferreira atualiza diariamente uma coluna sobre o mercado fonográfico brasileiro no portal G1. Clique aqui para acessar a coluna. O endereço é http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/


segunda-feira, 7 de abril de 2014

'Indies' diluem angústias de Belchior no tributo 'Ainda somos os mesmos'

Resenha de CD
Título: Ainda somos os mesmos
Artistas: Vários
Gravadora: Edição independente
Cotação: * * 
Disco disponível para download gratuito e legalizado no site Scream & Yell

Álbum antológico que alavancou a carreira fonográfica de Belchior, Alucinação (Philips, 1976) radiografa as angústias e urgências de geração que, na época, já estava desiludida com a falência das utopias sonhadas pela turma que ergueu a contracultura dos anos 1960. O sonho já tinha acabado - como John Lennon (1940 - 1980) havia sintetizado em frase histórica de 1970 - e o cantor e compositor cearense Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes era apenas um rapaz latino-americano com dois compactos, um álbum fracassado e um sucesso em voz alheia (Mucuripe, parceria com Fagner lançada por Elis Regina em 1972) quando gravou Alucinação como um sobrevivente quase sem esperanças. "Ainda somos os mesmos", reconheceu no verso conclusivo de Como nossos pais, música gravada no mesmo ano de 1976 por Elis Regina (1945 - 1982). Toda a ideologia consciente e a poética existencialista da música de Belchior é diluída, em maior ou menor grau, pelo elenco indie recrutado pelo jornalista Jorge Wagner, produtor do CD Ainda somos os mesmos, tributo a esse disco clássico de Belchior que alinha regravações das dez músicas do álbum, todas compostas solitariamente pelo cearense. Hino da desilusão hippieComo nossos pais, por exemplo, é enquadrada pelo artista paulista Philip Long em refinada moldura folk, mas a interpretação do cantor soa sem alma. Egresso do grupo paranaense Terminal Guadalupe, Dary Jr. molda Apenas um rapaz latino-americano como Dario Julio & Os Franciscanos na pressão do rock, mas também sem valorizar toda a força dos versos. Oriundo da banda carioca Harmada, Manoel Magalhães reveste Velha roupa colorida com o figurino roqueiro mais sujo do que o da gravação original sem expressar a contento o descontentamento quase desesperado do artista, que via o futuro repetir o passado com sensação de impotência. Dentro dessa atmosfera roqueira, o trio paranaense Nevilton consegue melhor resultado na equação arranjo-canto ao abordar Sujeito de sorte, tema de otimismo bissexto no álbum. Egresso do duo carioca Letuce, Lucas Vasconcellos beira o constrangimento com leitura cool, pontuada por ruídos, que praticamente anula a contundência da letra de Como o diabo gosta, música em que Belchior desafiava a repressão de sua época. Belchior nunca foi cool. Intérprete a quem foi confiada a música-título Alucinação, libelo antipreconceito, o cantor pernambucano Bruno Souto pelo menos entendeu o ponto de fervura em que se situa o cancioneiro de Belchior. Pena que seu canto esteja pouco dissociado do registro original do cearense. Souto beira o cover de Belchior. Projeto solo de Rodrigo Lemos (dissidente d'A Banda Mais Bonita da Cidade), Lemoskine manda bem o recado de Não leve flores com belo arranjo. Já o grupo carioca Fabrica dissolve todas as angústias contidas em A palo seco em abordagem que, embora ousada em sua desconstrução do arranjo original, desconsidera todo o desespero da letra cortante. O grupo mineiro Transmissor alcança resultado mais eficaz ao retratar Fotografia 3 x 4 com ênfase nos versos que expõem as desilusões de um nordestino que migra para o Sul maravilha. Afinal, a compreensão das letras é fator essencial para obter êxito na exposição da obra de Belchior. Egresso do extinto grupo Hidrocor, Marcelo Perdido ao menos tenta essa compreensão quando passa a mensagem de Antes do fim, música que fecha Alucinação e Ainda somos os mesmos como síntese desse disco hábil ao radiografar o estado de espírito da juventude consciente que vivia o desespero naqueles já conformados anos 1970 por perceber que, apesar de tudo que havia sido feito, ainda agia na sociedade como seus pais. Enfim, no todo, falta sangue e alma às interpretações do elenco indie convidado a celebrar Belchior em Ainda somos os mesmos. Mas não é mesmo fácil encarar cancioneiro de sentimentos tão universais, mas, ao mesmo tempo, tão pessoais.

11 comentários:

Mauro Ferreira disse...

Álbum antológico que alavancou a carreira fonográfica de Belchior, Alucinação (Philips, 1976) radiografa as angústias e urgências de geração que, na época, já estava desiludida com a falência das utopias sonhadas pela turma que ergueu a contracultura dos anos 1960. O sonho já tinha acabado - como John Lennon (1940 - 1980) havia sintetizado em frase histórica de 1970 - e o cantor e compositor cearense Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes era apenas um rapaz latino-americano com dois compactos, um álbum fracassado e um sucesso em voz alheia (Mucuripe, parceria com Fagner lançada por Elis Regina em 1972) quando gravou Alucinação como um sobrevivente quase sem esperanças. "Ainda somos os mesmos", reconheceu no verso conclusivo de Como nossos pais, música gravada no mesmo ano de 1976 por Elis Regina (1945 - 1982). Toda a ideologia consciente e a poética existencialista da música de Belchior é diluída, em maior ou menor grau, pelo elenco indie recrutado pelo jornalista Jorge Vagner, produtor do CD Ainda somos os mesmos, tributo a esse disco clássico de Belchior que alinha regravações das dez músicas do álbum, todas compostas solitariamente pelo cearense. Hino da desilusão hippie, Como nossos pais, por exemplo, é enquadrada pelo artista paulista Philip Long em refinada moldura folk, mas a interpretação do cantor soa sem alma. Egresso do grupo paranaense Terminal Guadalupe, Dary Jr. molda Apenas um rapaz latino-americano como Dario Julio & Os Franciscanos na pressão do rock, mas também sem valorizar toda a força dos versos. Oriundo da banda carioca Harmada, Manoel Magalhães reveste Velha roupa colorida com o figurino roqueiro mais sujo do que o da gravação original sem expressar a contento o descontentamento quase desesperado do artista, que via o futuro repetir o passado com sensação de impotência. Dentro dessa atmosfera roqueira, o trio paranaense Nevilton consegue melhor resultado na equação arranjo-canto ao abordar Sujeito de sorte, tema de otimismo bissexto no álbum. Egresso do duo carioca Letuce, Lucas Vasconcellos beira o constrangimento com leitura cool, pontuada por ruídos, que praticamente anula a contundência da letra de Como o diabo gosta, música em que Belchior desafiava a repressão de sua época. Belchior nunca foi cool. Intérprete a quem foi confiada a música-título Alucinação, libelo antipreconceito, o cantor pernambucano Bruno Souto pelo menos entendeu o ponto de fervura em que se situa o cancioneiro de Belchior. Pena que seu canto esteja pouco dissociado do registro original do cearense. Souto beira o cover de Belchior. Projeto solo de Rodrigo Lemos (dissidente d'A Banda Mais Bonita da Cidade), Lemoskine manda bem o recado de Não leve flores com belo arranjo. Já o grupo carioca Fabrica dissolve todas as angústias contidas em A palo seco em abordagem que, embora ousada em sua desconstrução do arranjo original, desconsidera todo o desespero da letra cortante. O grupo mineiro Transmissor alcança resultado mais eficaz ao retratar Fotografia 3 x 4 com ênfase nos versos que expõem as desilusões de um nordestino que migra para o Sul maravilha. Afinal, a compreensão das letras é fator essencial para obter êxito na exposição da obra de Belchior. Egresso do extinto grupo Hidrocor, Marcelo Perdido ao menos tenta essa compreensão quando passa a mensagem de Antes do fim, música que fecha Alucinação e Ainda somos os mesmos como síntese desse disco hábil ao radiografar o estado de espírito da juventude consciente que vivia o desespero naqueles já conformados anos 1970 por perceber que, apesar de tudo que havia sido feito, ainda agia na sociedade como seus pais. Enfim, no todo, falta sangue e alma às interpretações do elenco indie convidado a celebrar Belchior em Ainda somos os mesmos. Mas não é mesmo fácil encarar cancioneiro de sentimentos tão universais, mas, ao mesmo tempo, tão pessoais.

jwagner disse...

é Wagner, Mauro, com W.
no mais, obrigado por dedicar um tempo a ouvir e escrever sobre o disco.

Mauro Ferreira disse...

Grato pelo toque do erro da grafia de seu nome, já consertado. Abs, MauroF

Miyage disse...

Achei a releitura de "Como Nossos Pais" excelente. Para o Mauro soou sem alma, mas para mim, a desilusão e a resignação da canção nunca estiveram tão bem expressas. (É lógico que desconsidero a clássica gravação da Elis, que é algo sublime e eternizou a letra do Bel).

Pedro Progresso disse...

esses discos-tibuto acho que já deu. salvo o de Jards Macalé (volto pra curtir), nenhum outro tem nada de impactante. Marina, Cazuza, Belhior, Rorô, Péricles Cavalcanti, Caetano, Raça Negra... ainda soam melhores em seus registros originais ou gravações da época.

digo isso pois gosto da grande maioria das bandas/cantoras/cantores novos e do som que fazem, mas entendo que pertencem a outro universo, mais autoral e atual.

Pedro Progresso disse...

esses discos-tibuto acho que já deu. salvo o de Jards Macalé (volto pra curtir), nenhum outro tem nada de impactante. Marina, Cazuza, Belhior, Rorô, Péricles Cavalcanti, Caetano, Raça Negra... ainda soam melhores em seus registros originais ou gravações da época.

digo isso pois gosto da grande maioria das bandas/cantoras/cantores novos e do som que fazem, mas entendo que pertencem a outro universo, mais autoral e atual.

lurian disse...

Eu acho ótima a ideia de discos tributos, o problema não está necessariamente neles. Almir Chediak organizou antológicos Songbooks nos anos 90 e 2000. O problema desses novos tributos talvez esteja no transpor o Universo dos estilos dos novos artistas convidados em relação ao homenageado, fica geralmente parecendo deslocado. O tempo era outro, as questões eram outras e o modo de compor e interpretar as canções também.

lurian disse...

Eu acho ótima a ideia de discos tributos, o problema não está necessariamente neles. Almir Chediak organizou antológicos Songbooks nos anos 90 e 2000. O problema desses novos tributos talvez esteja no transpor o Universo dos estilos dos novos artistas convidados em relação ao homenageado, fica geralmente parecendo deslocado. O tempo era outro, as questões eram outras e o modo de compor e interpretar as canções também.

Marcelo disse...

Coitado do Belchior...não merecia isso!!!! Saudades do Almir Chediak. Esse sabia reunir uma galera da pesada e não deturpar a obra original do compositor!!

Victor Moraes, disse...

Não sei muito bem explicar mas acho que faz parte do estilo "Indie" tirar a alma das músicas. Ou faz uma letra bem superficial, simples e "bonitinha" ou qualquer outra vai soar opaca no ritmo.

ADEMAR AMANCIO disse...

Devia ser proibido por lei alguém regravar "Como nossos pais",a Elis já deu o grito definitivo.