Mauro Ferreira no G1

Aviso aos navegantes: desde 6 de julho de 2016, o jornalista Mauro Ferreira atualiza diariamente uma coluna sobre o mercado fonográfico brasileiro no portal G1. Clique aqui para acessar a coluna. O endereço é http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/


terça-feira, 1 de abril de 2014

Caetano saúda CD em que Gil toca João, 'revolucionário que nos definiu'

Disponível para venda nas lojas físicas e digitais a partir de hoje, 1º de abril de 2014, o CD Gilbertos samba - disco irretocável em que Gilberto Gil celebra a leveza e a modernidade legadas por João Gilberto - é apresentado aos formadores de opinião por texto assinado por Caetano Veloso. O cantor e compositor baiano conceitua o álbum com a propriedade de quem acompanhou toda a trajetória musical de Gil - em foto de Daryan Dornelles - e de quem, tal como seu amigo e conterrâneo, é devoto de João. Eis o texto de Caetano Veloso contextualiza Gil e João ("o revolucionário que definiu nossas vidas") ao saudar o lindo CD Gilbertos samba

"Conheci Gil pela TV. Acho que todo mundo já sabe disso. Existe até uma música maravilhosa, composta por Neguinho do Samba, que foi gravada por Daniela Mercury, em que minha mãe é citada dizendo o que de fato me dizia quando ele, no meio da tarde, aparecia no vídeo: "Venha ver aquele preto que você gosta". Nessa época, todos o chamavam de Beto. Mas num disquinho compacto que saiu pouco depois seu nome já era Gilberto Gil. Para mim, Gil era o milagre de alguém de carne e osso que podia reproduzir os acordes que João Gilberto fazia no violão. Eu próprio mal decifrava as funções de tônica e dominante. João Gilberto era uma iluminação para nós, tanto técnica quanto esteticamente. A coincidência do nome real de Gil (Gilberto Passos Gil Moreira, sendo Gil o sobrenome que se destacava entre os demais: o pai de Beto sempre foi chamado de Dr. Gil) com o do criador da bossa nova, o revolucionário que definiu nossas vidas, me fascinava. Ao mesmo tempo era uma confirmação daquilo que Gil se me apresentava e uma sugestão de fórmula publicitária inventada a partir do nome do grande criador. Mas não tinha sido inventada. Nem mesmo escolhida por sua força comercial. Era a forma essencial do nome próprio de Gil. Parece coisa de destino.

Agora Gilberto, o nome que Gil partilha com João, aparece no plural, intitulando um disco em que o antigo discípulo rende homenagem ao eterno mestre. E isso se dá numa virada abrangente, em que não é o jovem seguidor que renasce, mostrando a pureza de seu violão inicial, aprendido junto com o estilo da bossa nova, mas o artista vário e andarilho, com toda a sua musculatura de longa caminhada, é quem revisita o inspirador. É o Gil de Expresso 2222 e Palco, de Toda menina baiana e Parabolicamará, quem volta a Doralice, O pato e Desafinado.Ouvir Gil fazendo com canções que se vincularam para sempre a João o que fizera antes com Jackson do Pandeiro, Gonzaga ou Caymmi - mais: com o que ele vem fazendo com o repertório de composições próprias - é experiência de densa textura histórica. Toda a malha de significados da bossa nova e do pós-bossa nova, entrelaçada à do tropicalismo e do pós-tropicalismo, se exibe e se esconde, se reafirma e se desfaz na teimosa liberdade do músico Gilberto Gil.

A faixa-síntese disso é Eu vim da Bahia. Canção do Gil imediatamente pós-bossa e pré-Tropicália, esse samba era a grande surpresa do inacreditável disco feito por João em 1972, aquele de capa branca, o único em que ele pronuncia abertas as vogais breves. Pois bem. João, com aquele jeito mágico de tocar violão, tinha aparado as arestas das sequências algo barrocas de acordes de sétima, dando uma fluidez e redondeza inimagináveis à canção, sem deixar de expor-lhe a exuberância estrutural. Agora Gil a retoma simplesmente porque João a gravou - mas reduz grande parte da composição a um modalismo primitivista que nega a sua natureza para reafirmá-la em outro nível. E vai além de João no caminho de busca de uma nota só, aproximando-se de nota nenhuma. É uma realização do projeto íntimo já confessado por Gil de ater-se simplesmente a bater num tambor. Os brilhos de Realce e os riffs de Refavela são moídos nesse processo - e o acercamento a João lhe deu o direito de formular a radicalidade de seu gesto. Isso numa música que fala diretamente das origens: diz de onde vieram os dois Gilbertos.

Bem Gil e Moreno Veloso criaram o ambiente de amor e respeito pelo som que condiz com as horas gastas por Gil, em casa, para trabalhar minuciosamente cada canção, as quais parecem estar sendo tocadas e cantadas sem esforço consciente. Todas as gravações feitas com Gil cantando e tocando ao mesmo tempo. Em muitas delas ouve-se a percussão eletrônica de Domenico Lancellotti. Numa (o Desafinado!), a guitarra de Pedro Sá.

Às vezes Moreno se une a Domenico. Danilo Caymmi toca flauta em Eu sambo mesmo. Há o violino de Nicolas Krassik, o acordeão de Mestrinho. Principalmente temos os violões de Dori e de Bem somados ao de Gil, respectivamente em Gilbertos e Um abraço no João, a primeira sendo a única inédita composta por Gil para este disco; a segunda, uma reverência ao clássico instrumental de João Um abraço no Bonfá. Rodrigo Amarante escreveu o arranjo de Você e eu, a obra-prima de Carlos Lyra (com letrs de Vinicius).

Tudo tem a verdade da história musical de Gil, incluído aí o interesse que ele demonstrou pela geração de Domenico e Moreno já em letra de música, o amor por Caymmi, a camaradagem musical com os instrumentistas que o cercam, o encontro miraculoso com a musicalidade de seu filho Bem. Nada diria mas sobre Gil do que voltar-se agora para o legado de João Gilberto, sendo ele um joãogilbertiano de origem, mas um temperamento artístico que contrasta com o do mestre. Ouvir Gil tocando João é entrar em contato com toda a aventura de nossa música e de nossa vida."  Caetano Veloso

7 comentários:

Mauro Ferreira disse...

Disponível para venda nas lojas físicas e digitais a partir de hoje, 1º de abril de 2014, o CD Gilbertos samba - disco irretocável em que Gilberto Gil celebra a leveza e a modernidade legadas por João Gilberto - é apresentado aos formadores de opinião por texto assinado por Caetano Veloso. O cantor e compositor baiano conceitua o álbum com a propriedade de quem acompanhou toda a trajetória musical de Gil - em foto de Daryan Dornelles - e de quem, tal como seu amigo e conterrâneo, é devoto de João.

Rafael disse...

Ainda não o escutei, mas farei isso pelo Deezer hoje. Parece estar lindo mesmo, assim como esse belo texto do grande Caetano.

ADEMAR AMANCIO disse...

O Gilberto Gil tem uns discos naquela linha,de músico pra músico.Eu não tenho formação,e nem ouvido de músico.

paulo sergio disse...

Gilberto Gil é um dos três ou quatro compositores que me fazem esperar por três ou quatro anos.
Ouvir qualquer deus cantando o que João cantou é dispensável,o compositor Gil é quase vital.
Desperdício!

Fernando Lima disse...

O disco é uma homenagem de Gil a João. Ouvi-lo só reforça a perfeição do canto de João e o seu suingue ao violão; inimitáveis!!
Contudo, o disco vale a pena pelo arranjo incrível de "Eu Vim da Bahia".

lurian disse...

O disco é bom de ouvir, os arranjos bem sacados, o violão sempre perfeito, e felizmente limou-se aquela percussão cansativa que alguns põem no samba. O único problema a meu ver é que Gil não tem mais aquela voz reluzente de uns 15 anos atrás, mas isso não desmerece o ótimo disco.

Eduardo Cáffaro disse...

puxa, adorei esse cd , adorei os arranjos, a percussão ....achei de fato genial. Gil me surpreendeu de novo.