Mauro Ferreira no G1

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domingo, 27 de outubro de 2013

Roqueiro que viu na sombra a luz da poesia, Lou Reed sai de cena aos 71

Outsider pela própria natureza rebelde, Lewis Allan Reed (2 de março de 1942 - 27 de outubro de 2013) certamente seria cínico o suficiente para caracterizar este domingo como a perfect day, em alusão ao título da canção de sua obra-prima Transformer, álbum de 1972. Mas o universo pop - consternado com a notícia da saída de cena, aos 71 anos, do cantor, compositor e guitarrista norte-americano - ira contrariar o artista, pois o dia da morte de Lou Reed, um dos artistas mais geniais e influentes da música do século XX, jamais roçaria a perfeição. Ao seguir pela trilha aberta nos anos 60 por seu colega norte-americano Bob Dylan, Reed logo se impôs nesse universo pop por enxergar a luz da poesia entre as sombras do (sub)mundo. Sim, estudante de literatura naqueles conturbados anos 60, Lou Reed foi um roqueiro alçado ao status de poeta - como Dylan ou como o brasileiro Renato Russo (1960 - 1996) - por retratar a vida como ela é, o Homem como ele é moldado pela sociedade. Diplomado no caldeirão cultural e no caos sempre efervescente de Nova York (EUA), a cidade onde formou com John Cale o seminal grupo The Velvet Underground, Reed atravessou gerações como um artista tão referencial que o grupo Metallica não hesitou em gravar álbum com esse pioneiro artista underground, Lulu (2011). Ao emergir no universo pop, Reed mexeu com fogo e com os brios conservadores da sociedade de sua época ao aplicar doses cavalares de sexo e drogas pesadas nos versos de suas letras incendiárias - temática que explorou de forma mais ampla a partir de 1970, quando deixou o Velvet Underground. Seu primeiro álbum, Lou Reed (1970), deu a pista errada de que Reed já poderia ser carta fora do jogo. Só que a este disco de fato frustrante, formatado com sobras do repertório do Velvet Underground, seguiu-se um dos clássicos atemporais do (glam) rock, Transformer, o já citado álbum de 1972, consagrado sobretudo por Walk on the wild side, espécie de hino underground que ajudou a formar a personalidade solo de Reed. Sob a produção antenada do colega inglês David Bowie, o roqueiro norte-americano deu a cara a tapa já na imagem ambígua da capa do disco. E, dessa vez, a pista era verdadeira: em Make up, uma das 11 faixas do álbum, Reed saiu do armário, revelando homossexualidade já sinalizada no repertório do Velvet Underground em músicas como I’ll be your mirror. Só que o cultuado Transformer ampliou os efeitos da ação poética de Reed, embora sob a ótica já era conhecida dos (poucos) fãs que seguiram o Velvet na trilha underground. Já na música que abria o álbum, Vicious, Reed tocou com prazer no tema então tabu do sadomasoquismo. Apesar dos temas abusados, ou talvez justamente por causa deles, Transformer deu a Reed projeção mundial que nenhum outro álbum seu alcançaria. Talvez porque o poeta, rebelde, não tenha seguido à risca a receita nos discos seguintes. O posterior Berlin (1973), por exemplo, é grande disco conceitual em que Reed dissecou o relacionamento fracassado de fictício casal norte-americano, Caroline e Jim, residente na cidade alemã que dava nome ao álbum. Trabalho de contornos sinfônicos, moldados pelo produtor Bob Ezrin, Berlin tem atmosfera sombria, tocando fundo na ferida nunca cicatrizada de assuntos como violência doméstica. Daí em diante, a discografia de Lou Reed mostraria um artista sempre inquieto, avesso a fórmulas e repetições. Após lançar em 1974 dois álbuns de boa repercussão comercial, Sally can’t dance e o Rock’n’roll animal, este gravado ao vivo, Reed investiu pesado – e de forma pioneira – na música eletrônica, no duplo Metal machine music, fracasso de vendas em 1975 (o mesmo ano de Coney island baby, disco de aura gay). Reed nunca deixou de transitar pelo wild side do mercado do disco, mas sempre na companhia de sua sombria poesia. Basta ouvir The raven (2003), álbum inspirado na obra do poeta Edgar Alan Poe (1809-1849) - outro que transitava pelas sombras - e originário de espetáculo (Poe-Try, 2000) em que Reed entrelaçou música, teatro e poesia. Celebrado com as glórias concedidas aos popstars, o poeta do rocks ai de cena entronizado no posto vitalício de um dos reis da contracultura. Contudo, a rigor, sua obra oscilou entre graus díspares de densidade musical e poética. O experimental Lulu, por exemplo, decepcionou tanto fãs de Reed quanto do Metallica, embora tenha se revelado álbum mais do cantor do que do grupo. Quando Reed acertou, como em New York (1989), álbum em que radiografou o pulmão congestionado da cidade natal que destratava imigrantes com a mesma frieza com que mandava jovens para a guerra, Reed fez jus ao status de gênio, ecoando influências de escritores como o irlandês James Joyce (1882-1941). Sua discografia inclui discos que merecem reavaliação, caso do já obscuro The blue mask (1982), feito dez anos antes de um álbum conceitual ainda menos ouvido, Magic and loss (1992), retrato fiel de tempo marcado por perdas e imerso na ressaca das drogas e da Aids, então ceifando vidas e contaminando com medo o prazer sexual, em especial o da comunidade gay à qual Reed sempre se aliou com orgulho, ainda que sua ambiguidade sexual o tenha levado a se relacionar com homens, mulheres e travestis. Suas letras de música embaralharam os conceitos de rock e poesia, mostrando que o primeiro poderia conviver com a segunda sem perda de decibéis. Poeta roqueiro que atravessou o fogo, Lou Reed sai de cena - por complicações decorrentes de transplante de fígado feito em abril deste ano de 2013 - imaculado na sua persona artística construída nas margens do undergound.

7 comentários:

Mauro Ferreira disse...

Outsider pela própria natureza rebelde, Lewis Allan Reed (2 de março de 1942 - 27 de outubro de 2013) certamente seria cínico o suficiente para caracterizar este domingo como a perfect day, em alusão ao título da canção de sua obra-prima Transformer, álbum de 1972. Mas o universo pop - consternado com a notícia da saída de cena, aos 71 anos, do cantor, compositor e guitarrista norte-americano - ira contrariar o artista, pois o dia da morte de Lou Reee, um dos artistas mais geniais e influentes da música do século XX, jamais roçaria a perfeição. Ao seguir pela trilha aberta nos anos 60 por seu colega norte-americano Bob Dylan, Reed logo se impôs nesse universo pop por enxergar luz e poesia entre as sombras do (sub)mundo. Sim, estudante de literatura naqueles conturbados anos 60, Lou Reed foi um roqueiro alçado ao status de poeta - como Dylan ou como o brasileiro Renato Russo (1960 - 1996) - por retratar a vida como ela é, o Homem como ele é moldado pela sociedade. Diplomado no caldeirão cultural e no caos sempre efervescente de Nova York (EUA), a cidade onde formou com John Cale o seminal grupo The Velvet Underground, Reed atravessou gerações como um artista tão referencial que o grupo Metallica não hesitou em gravar álbum com esse pioneiro artista underground, Lulu (2011). Ao emergir no universo pop, Reed mexeu com fogo e com os brios conservadores da sociedade de sua época ao aplicar doses cavalares de sexo e drogas pesadas nos versos de suas letras incendiárias - temática que explorou de forma mais ampla a partir de 1970, quando deixou o Velvet Underground. Seu primeiro álbum, Lou Reed (1970), deu a pista errada de que Reed já poderia ser carta fora do jogo. Só que a este disco de fato frustrante, formatado com sobras do repertório do Velvet Underground, seguiu-se um dos clássicos atemporais do (glam) rock, Transformer, o já citado álbum de 1972, consagrado sobretudo por Walk on the wild side, espécie de hino underground que ajudou a formar a personalidade solo de Reed. Sob a produção antenada do colega inglês David Bowie, o roqueiro norte-americano deu a cara a tapa já na imagem ambígua da capa do disco. E, dessa vez, a pista era verdadeira: em Make up, uma das 11 faixas do álbum, Reed saiu do armário, revelando homossexualidade já sinalizada no repertório do Velvet Underground em músicas como I’ll be your mirror. Só que o cultuado Transformer ampliou os efeitos da ação poética de Reed, embora sob a ótica já era conhecida dos (poucos) fãs que seguiram o Velvet na trilha underground. Já na música que abria o álbum, Vicious, Reed tocou com prazer no tema então tabu do sadomasoquismo.

Mauro Ferreira disse...

Apesar dos temas abusados, ou talvez justamente por causa deles, Transformer deu a Reed projeção mundial que nenhum outro álbum seu alcançaria. Talvez porque o poeta, rebelde, não tenha seguido à risca a receita nos discos seguintes. O posterior Berlin (1973), por exemplo, é grande disco conceitual em que Reed dissecou o relacionamento fracassado de fictício casal norte-americano, Caroline e Jim, residente na cidade alemã que dava nome ao álbum. Trabalho de contornos sinfônicos, moldados pelo produtor Bob Ezrin, Berlin tem atmosfera sombria, tocando fundo na ferida nunca cicatrizada de assuntos como violência doméstica. Daí em diante, a discografia de Lou Reed mostraria um artista sempre inquieto, avesso a fórmulas e repetições. Após lançar em 1974 dois álbuns de boa repercussão comercial, Sally can’t dance e o Rock’n’roll animal, este gravado ao vivo, Reed investiu pesado – e de forma pioneira – na música eletrônica, no duplo Metal machine music, fracasso de vendas em 1975 (o mesmo ano de Coney island baby, disco de aura gay). Reed nunca deixou de transitar pelo wild side do mercado do disco, mas sempre na companhia de sua sombria poesia. Basta ouvir The raven (2003), álbum inspirado na obra do poeta Edgar Alan Poe (1809-1849) - outro que transitava pelas sombras - e originário de espetáculo (Poe-Try, 2000) em que Reed entrelaçou música, teatro e poesia. Celebrado com as glórias concedidas aos popstars, o poeta do rocks ai de cena entronizado no posto vitalício de um dos reis da contracultura. Contudo, a rigor, sua obra oscilou entre graus díspares de densidade musical e poética. O experimental Lulu, por exemplo, decepcionou tanto fãs de Reed quanto do Metallica, embora tenha se revelado álbum mais do cantor do que do grupo. Quando Reed acertou, como em New York (1989), álbum em que radiografou o pulmão congestionado da cidade natal que destratava imigrantes com a mesma frieza com que mandava jovens para a guerra, Reed fez jus ao status de gênio, ecoando influências de escritores como o irlandês James Joyce (1882-1941). Sua discografia inclui discos que merecem reavaliação, caso do já obscuro The blue mask (1982), feito dez anos antes de um álbum conceitual ainda menos ouvido, Magic and loss (1992), retrato fiel de tempo marcado por perdas e imerso na ressaca das drogas e da Aids, então ceifando vidas e contaminando com medo o prazer sexual, em especial o da comunidade gay à qual Reed sempre se aliou com orgulho, ainda que sua ambiguidade sexual o tenha levado a se relacionar com homens, mulheres e travestis. Suas letras de música embaralharam os conceitos de rock e poesia, mostrando que o primeiro poderia conviver com a segunda sem perda de decibéis. Poeta roqueiro que atravessou o fogo, Lou Reed sai de cena - por complicações decorrentes de transplante de fígado feito em abril deste ano de 2013 - imaculado na sua persona artística construída nas margens do undergound.

lurian disse...

Nico, Andy W., Edie S. e J. Cale devem tê-lo recebido numa festança profana pelas nuvens. Um dos artistas mais influentes dos anos 70. Não faz muito soubemos o quanto esse grupo que frequentava a Factory influenciou as gerações seguintes. Eternizado(s).

Maria disse...

Melhor versão dessa música dele!
http://www.youtube.com/watch?v=qYIH3jUa6oA

noca disse...

Belo e preciso texto Mauro.Não é nada fácil,num momento que o mundo perde alguem tão precioso no impreciso,se expressar tão bem.

Mauro Ferreira disse...

Noca, grato. Mas, no caso, fui favorecido por já ter escrito há, três anos, um ensaio sobre a obra de Reed para uma revista. Abs, MauroF

Raphael Vidigal disse...

Você falou do Renato Russo, mas quem mais se aproximava e inclusive homenageou Reed com citação na música brasileira foi Cazuza, na igualmente "absurda" canção 'Só as mães são felizes'. Um ótimo poeta Lou Reed, sobretudo.