Mauro Ferreira no G1

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domingo, 1 de dezembro de 2013

Baleiro oscila ao interpretar o universo 'especial e específico' de Zé Ramalho

Resenha de show
Evento: Banco do Brasil covers
Título: Zeca Baleiro interpreta Zé Ramalho
Artista: Zeca Baleiro (em foto de Rodrigo Amaral)
Local: Vivo Rio (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 30 de novembro de 2013
Cotação: * * * 

 Quando se abriram as cortinas da casa Vivo Rio, na estreia carioca do show Zeca Baleiro interpreta Zé Ramalho, o público viu o sagaz cantor maranhense de costas para a plateia, empunhando sua guitarra no palco esfumaçado. Ao se virar, Baleiro começou a cantar Ave de prata (Zé Ramalho, 1979) envolto em atmosfera meio dark. Quase teatral, o climático começo do show dirigido por Monique Gardenberg para a série Banco do Brasil covers introduziu Baleiro no mundo apocalíptico de seu antecessor Zé Ramalho, cantor e compositor paraibano cuja obra autoral foi construída a partir dos anos 70 em universo "especial e específico", como definiu o próprio Baleiro em cena ao saudar o cancioneiro do colega de quem se tornou parceiro em O rei do rock - música lançada por Ramalho no álbum Parceria dos viajantes, de 2007, e revivida por Baleiro neste tributo - e em Repente cruel (tema ainda inédito em disco). O show resultou interessante, no todo, só que não engrenou logo de imediato. Nos primeiros números, pairou a sensação de que músicas como Ave de prata, a cortante A terceira lâmina (Zé Ramalho, 1981) e A dança das borboletas (Zé Ramalho e Alceu Valença, 1977) - tema cuja aura psicodélica poderia ter sido mais clareada pelo arranjo pesado da abordagem de Baleiro - já haviam ganhado registros mais sintonizados com o caráter místico e mítico de obra pontuada por questões alegóricas de natureza espiritual. Afinal, o próprio Zé Ramalho (com sua voz cavernosa que já lhe rendeu alcunhas como a de O profeta do sertão) é habitualmente o intérprete ideal de seu cancioneiro, embora cantoras como Elba Ramalho e Amelinha - convidada do bis que nem sempre acertou o passo veloz do Frevo mulher (Zé Ramalho, 1979), tema de pegada incendiária lançado pela própria artista cearense - também já tenham feito registros definitivos desse repertório realmente especial. Baleiro oscilou no início frio do show, mas acabou encontrando o tom a partir de Chão de giz (Zé Ramalho, 1978), canção introduzida por piano. A interpretação a capella de Desejo de mouro (Zé Ramalho) - um dos lados Z pescados por Baleiro na discografia de Ramalho para montar o roteiro - também funcionou muito bem, inclusive pelo fato de o número ter remetido aos vocais rústicos dos cantadores nordestinos que tanto influenciaram Ramalho na criação de sua obra. Em Kamikaze (Zé Ramalho, 1982), a guitarra rascante de Tuco Marcondes - virtuose da banda Cavalos do Cão - evocou na introdução os sons árabes da Península Ibérica que cruzaram oceanos e desaguaram na Nação Nordestina, cuja música foi moldada com forte influência moura. Ao interpretar Ramalho, Baleiro se concentrou na fase áurea da produção do colega - composta e gravada em período que vai de 1977 a 1982 - sem deixar de lembrar o momento seminal de obra fonográfica já vasta. Trata-se do lendário disco duplo Paêbirú, gravado em 1975 por Ramalho em dupla com o compositor pernambucano Lula Côrtes (1949 - 2011). Este disco foi representado no roteiro por Não existe molhado igual ao pranto (Zé Ramalho e Lula Côrtes, 1975), tema de referências sacras introduzido no show pelo som do badalar de sino de igreja. Número turbinado com projeção de vídeo filmado por Baleiro sob a direção de Monique Gardenberg, Garoto de aluguel (Taxi boy) (Zé Ramalho, 1979) - música inspirada na fase pré-fama em que Ramalho se prostituiu no Rio de Janeiro (RJ) - exemplificou o bom domínio que Ramalho, artista formado nos bailes da vida, sempre teve do idioma pop. Na sequência, os músicos ladearam Baleiro - como um quinteto de cordas ao qual se juntou um sanfoneiro - e formaram espécie de roda de tonalidade flamenca para interpretar músicas como Vila do sossego (Zé Ramalho, 1978), número em que as cordas evocaram os vocais feitos por cantoras como Elba Ramalho na gravação original da canção (a primeira de Zé Ramalho ouvida por Baleiro) e Táxi lunar (Zé Ramalho, Alceu Valença e Geraldo Azevedo, 1979), número de forte coro popular que sedimentou a comunhão entre artista e público. Achado do roteiro, Um pequeno xote (Zé Ramalho, 1981) - tema lançado por Ramalho em seu terceiro álbum solo, A terceira lâmina (CBS, 1981) - ganhou arranjo feito em clima de forró de pé-de-serra. A presença de Fagner em Pelo vinho e pelo pão (Zé Ramalho, 1978) foi boa surpresa que valorizou a apresentação carioca do show, cujo roteiro adicionou com propriedade Vapor barato (Jards Macalé e Waly Salomão, 1971) e À flor da pele (Zeca Baleiro, 1997) a Mulheres, música que justificou as licenças poéticas por ser bissexta parceria de Ramalho com o carioca Jards Macalé, compositor de Vapor barato, música citada por Baleiro em À flor da pele, seu primeiro sucesso autoral. Número instrumental, Bicho de sete cabeças (Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e Renato Rocha, 1979) enfatizou o entrosamento da banda Cavalos do Cão e preparou o clima para a volta de Baleiro à cena em Eternas ondas (Zé Ramalho, 1980), sucesso de Fagner que Baleiro reviveu em tons suaves que diluíram a força épica do tema. Música já em si menos inspirada, Kriptonia (Zé Ramalho, 1983) passou despercebida, como se apenas tivesse adiando um dos momentos mais esperados, Avohai (Zé Ramalho, 1978), cantada na sequência, fechando o show, cujo bis lembrou Entre a serpente e a estrela (Amarillo by morning) (Terry Stafford e Paul Fraser, 1973, em versão em português de Aldir Blanc, 1992) - tema que Ramalho gravou para a trilha sonora da novela Pedra sobre pedra (TV Globo, 1982) e que o recolocou nas paradas após anos de ostracismo - e, claro, Admirável gado novo (Zé Ramalho, 1979). Ao sair de cena, Zeca Baleiro deixou no público a sensação de que Zé Ramalho é mesmo dono de obra especial e específica. E que, por isso mesmo, precisa de intérpretes sagazes, capazes de abordar esse cancioneiro com (marcante) personalidade.

2 comentários:

Mauro Ferreira disse...

Quando se abriram as cortinas da casa Vivo Rio, na estreia carioca do show Zeca Baleiro interpreta Zé Ramalho, o público viu o sagaz cantor maranhense de costas para a plateia, empunhando sua guitarra no palco esfumaçado. Ao se virar, Baleiro começou a cantar Ave de prata (Zé Ramalho, 1979) envolto em atmosfera meio dark. Quase teatral, o climático começo do show dirigido por Monique Gardenberg para a série Banco do Brasil Covers introduziu Baleiro no mundo apocalíptico de seu antecessor Zé Ramalho, cantor e compositor paraibano cuja obra autoral foi construída a partir dos anos 70 em universo "especial e específico", como definiu o próprio Baleiro em cena ao saudar o cancioneiro do colega de quem se tornou parceiro em O rei do rock - música lançada por Ramalho no álbum Parceria dos viajantes, de 2007, e revivida por Baleiro neste tributo - e em Repente cruel (tema ainda inédito em disco). O show resultou interessante, no todo, mas não engrenou logo de início. Nos primeiros números, pairou a sensação de que músicas como a citada Ave de prata, A terceira lâmina (Zé Ramalho, 1981) e A dança das borboletas (Zé Ramalho e Alceu Valença, 1977) - tema cuja aura psicodélica poderia ter sido mais clareada pelo arranjo pesado da abordagem de Baleiro - já haviam ganhado registros mais sintonizados com o caráter místico e mítico de obra pontuada por questões alegóricas de natureza espiritual. Afinal, o próprio Zé Ramalho (com sua voz cavernosa que já lhe rendeu alcunhas como a de O profeta do sertão) é habitualmente o intérprete ideal de seu cancioneiro, embora cantoras como Elba Ramalho e Amelinha - convidada do bis que nem sempre acertou o passo veloz do Frevo mulher (Zé Ramalho, 1979), tema de pegada incendiária lançado pela própria artista cearense - também já tenham feito registros definitivos desse repertório realmente especial. Baleiro oscilou no início frio do show, mas acabou encontrando o tom a partir de Chão de giz (Zé Ramalho, 1978), canção introduzida por piano. A interpretação a capella de Desejo de mouro (Zé Ramalho) - um dos lados Z pescados por Baleiro na discografia de Ramalho para montar o roteiro - também funcionou bem, inclusive pelo fato de o número ter remetido aos vocais rústicos dos cantadores nordestinos que tanto influenciaram Ramalho na criação de sua obra. Em Kamikaze (Zé Ramalho, 1982), a guitarra rascante de Tuco Marcondes - virtuose da banda Cavalos do Cão - evocou na introdução os sons árabes da Península Ibérica que cruzaram oceanos e desaguaram na Nação Nordestina, cuja música foi moldada com forte influência moura. Ao interpretar Ramalho, Baleiro se concentrou na fase áurea da produção do colega - composta e gravada em período que vai de 1977 a 1982 - sem deixar de lembrar o momento seminal de obra fonográfica já vasta. Trata-se do lendário disco duplo Paêbirú, gravado em 1975 por Ramalho em dupla com o compositor pernambucano Lula Côrtes (1949 - 2011). Este disco foi representado no roteiro por Não existe molhado igual ao pranto (Zé Ramalho e Lula Côrtes, 1975), tema de referências sacras introduzido no show pelo som do badalar de sino de igreja.

Mauro Ferreira disse...

Número turbinado com projeção de vídeo filmado por Baleiro sob a direção de Monique Gardenberg, Garoto de aluguel (Taxi boy) (Zé Ramalho, 1979) - música inspirada na fase pré-fama em que Ramalho se prostituiu no Rio de Janeiro (RJ) - exemplificou o bom domínio que Ramalho, artista formado nos bailes da vida, sempre teve do idioma pop. Na sequência, os músicos ladearam Baleiro - como um quinteto de cordas ao qual se juntou um sanfoneiro - e formaram espécie de roda de tonalidade flamenca para interpretar músicas como Vila do sossego (Zé Ramalho, 1978), número em que as cordas evocaram os vocais feitos por cantoras como Elba Ramalho na gravação original da canção (a primeira de Zé Ramalho ouvida por Baleiro) e Táxi lunar (Zé Ramalho, Alceu Valença e Geraldo Azevedo, 1979), número de forte coro popular que sedimentou a comunhão entre artista e público. Achado do roteiro, Um pequeno xote (Zé Ramalho, 1981) - tema lançado por Ramalho em seu terceiro álbum solo, A terceira lâmina (CBS, 1981) - ganhou arranjo feito em clima de forró de pé-de-serra. A presença de Fagner em Pelo vinho e pelo pão (Zé Ramalho, 1978) foi boa surpresa que valorizou a apresentação carioca do show, cujo roteiro adicionou com propriedade Vapor barato (Jards Macalé e Waly Salomão, 1971) e À flor da pele (Zeca Baleiro, 1997) a Mulheres, música que justificou as licenças poéticas por ser bissexta parceria de Ramalho com o carioca Jards Macalé, compositor de Vapor barato, música citada por Baleiro em À flor da pele, seu primeiro sucesso autoral. Número instrumental, Bicho de sete cabeças (Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e Renato Rocha, 1979) enfatizou o entrosamento da banda Cavalos do Cão e preparou o clima para a volta de Baleiro à cena em Eternas ondas (Zé Ramalho, 1980), sucesso de Fagner que Baleiro reviveu em tons suaves que diluíram a força épica do tema. Música já em si menos inspirada, Kriptonia (Zé Ramalho, 1983) passou despercebida, como se apenas tivesse adiando um dos momentos mais esperados, Avohai (Zé Ramalho, 1978), cantada na sequência, fechando o show, cujo bis lembrou Entre a serpente e a estrela (Amarillo by morning) (Terry Stafford e Paul Fraser, 1973, em versão em português de Aldir Blanc, 1992) - tema que Ramalho gravou para a trilha sonora da novela Pedra sobre pedra (TV Globo, 1982) e que o recolocou nas paradas após anos de ostracismo - e, claro, Admirável gado novo (Zé Ramalho, 1979). Ao sair de cena, Zeca Baleiro deixou no público a sensação de que Zé Ramalho é mesmo dono de uma obra especial e específica. E que, por isso mesmo, precisa de intérpretes sagazes