Mauro Ferreira no G1

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sábado, 29 de junho de 2013

'O que é que a baiana tem?' expõe a liberdade de Caymmi na era do rádio

Resenha de livro
Título: O que é que a baiana tem? - Dorival Caymmi na era do rádio
Autora: Stella Caymmi
Editora: Civilização Brasileira
Cotação: * * * *

Doze anos após reconstituir os passos de seu avô Dorival Caymmi (1914 - 2008) na monumental biografia Dorival Caymmi - O mar e o tempo (Editora 34, 2001) e cinco anos após mostrar que as inovações harmônicas do cancioneiro marítimo do compositor baiano também anteciparam de certa forma a onda modernista de 1958 em Caymmi e a Bossa Nova (Íbis Libris, 2008), a jornalista e escritora carioca Stella Caymmi presta outro relevante serviço à bibliografia musical brasileira com a edição de O que é que a baiana tem? - Dorival Caymmi na era do rádio. O livro esmiúça a trajetória de Caymmi - e sua dificuldade para ser reconhecido na selva da cidade do Rio de Janeiro (RJ), para onde o baiano migrou em 1938 - no período em que o rádio dava as cartas no mercado comum da música em jogo nem sempre limpo, como admitiu o próprio Caymmi em entrevista concedida a Stella em 1995 na cidade de Pequeri (MG). "O que se procura esconder é a verdade, a realidade, porque os interesses são esses: a fábrica quer vender o disco, o artista não quer perder a fama, a imprensa é adulada para não dar notas maliciosas; então havia tudo isso, não vai dizer que não que eu estava ali", disse Caymmi, com autoridade de quem testemunhou e/ou viveu fatos relevantes da era do rádio, em depoimento reproduzido pela autora à página 169 do livro. Stella esclarece as regras do jogo que imperavam - e ainda imperam, a bem da verdade - na indústria da música na era do rádio, período que vai dos anos 30 aos 50, sendo seu apogeu situado entre 1940 e 1955. O livro resulta de tese de doutorado defendida pela escritora, mas sua linguagem evita o academicismo. Com clareza e com objetividade jornalística, Stella mostra como Caymmi teve que fazer impor sua personalidade pacífica no rádio e na gravadora Odeon. Nessa companhia fonográfica, o cantor debutou em 1939 em disco de 78 rotações dividido pelo artista com ninguém menos do que Carmen Miranda (1909 - 1955), cantora portuguesa que era a maior estrela da música brasileira na época. Com Carmen, Caymmi gravou duas músicas de sua autoria, O que é que a baiana tem? - samba que seria divisor de águas na carreira da cantora e que ajudaria a Brazilian Bombshell a cristalizar a imagem de baiana estilizada com a qual faria sucesso nos Estados Unidos ao longo da década de 40 - e A preta do acarajé. Ao analisar o impacto dessa histórica gravação, Stella mostra como a importância da música de Caymmi na carreira de Carmen foi muitas vezes minimizada pela imprensa da época. De todo modo, apesar do retumbante sucesso do samba O que é que a baiana tem?, incluído no filme Banana da terra (1939) em decisão que provocou a ira de compositores como David Nasser (1917 - 1980) e alfinetou o ego do então soberano Ary Barroso (1903 - 1964), Caymmi se sentiu desconfortável ao dar continuidade à sua carreira fonográfica na Odeon. É que a gravadora exigia, em contrato leonino, que o novato compositor - hábil intérprete e violonista - gravasse sucessos. Temeroso de estar pondo sua criação artística a serviço da indústria da música, Caymmi preferiu abrir mão de um contrato de longo prazo com a companhia para garantir sua liberdade. Tática que também usou com as emissoras de rádio sempre que se sentia tolhido em sua liberdade Por cantar bem e tocar um violão singular, o artista preferiu muitas vezes o conforto dos shows feitos em boates, mesmo sendo acusado pelos jornais de estar "se distanciando do povo". Além de traçar rico painel da música brasileira na época, o livro O que é que a baiana tem? - Dorival Caymmi na era do rádio expõe a integridade de Caymmi na condução de sua carreira nesse período de consolidação de sua obra e de seu jeito de ser. A obra relativamente curta do compositor - cerca de 120 músicas compostas em 94 anos de vida - é o maior atestado de que Dorival Caymmi soube caminhar em seu tempo próprio, fazendo valer seus princípios na selvagem era do rádio, ora dissecada no ótimo livro de Stella Caymmi.

Um comentário:

Mauro Ferreira disse...

Doze anos após reconstituir os passos de seu avô Dorival Caymmi (1914 - 2008) na monumental biografia Dorival Caymmi - O mar e o tempo (Editora 34, 2001) e cinco anos após mostrar que as inovações harmônicas do cancioneiro marítimo do compositor baiano também anteciparam de certa forma a onda modernista de 1958 em Caymmi e a Bossa Nova (Íbis Libris, 2008), a jornalista e escritora carioca Stella Caymmi presta outro relevante serviço à bibliografia musical brasileira com a edição de O que é que a baiana tem? - Dorival Caymmi na era do rádio. O livro esmiúça a trajetória de Caymmi - e sua dificuldade para ser reconhecido na selva da cidade do Rio de Janeiro (RJ), para onde o baiano migrou em 1938 - no período em que o rádio dava as cartas no mercado comum da música em jogo nem sempre limpo, como admitiu o próprio Caymmi em entrevista concedida a Stella em 1995 na cidade de Pequeri (MG). "O que se procura esconder é a verdade, a realidade, porque os interesses são esses: a fábrica quer vender o disco, o artista não quer perder a fama, a imprensa é adulada para não dar notas maliciosas; então havia tudo isso, não vai dizer que não que eu estava ali", disse Caymmi, com autoridade de quem testemunhou e/ou viveu fatos relevantes da era do rádio, em depoimento reproduzido pela autora à página 169 do livro. Stella esclarece as regras do jogo que imperavam - e ainda imperam, a bem da verdade - na indústria da música na era do rádio, período que vai dos anos 30 aos 50, sendo seu apogeu situado entre 1940 e 1955. O livro resulta de tese de doutorado defendida pela escritora, mas sua linguagem evita o academicismo. Com clareza e com objetividade jornalística, Stella mostra como Caymmi teve que fazer impor sua personalidade pacífica no rádio e na gravadora Odeon. Nessa companhia fonográfica, o cantor debutou em 1939 em disco de 78 rotações dividido pelo artista com ninguém menos do que Carmen Miranda (1909 - 1955), cantora portuguesa que era a maior estrela da música brasileira na época. Com Carmen, Caymmi gravou duas músicas de sua autoria, O que é que a baiana tem? - samba que seria divisor de águas na carreira da cantora e que ajudaria a Brazilian Bombshell a cristalizar a imagem de baiana estilizada com a qual faria sucesso nos Estados Unidos ao longo da década de 40 - e A preta do acarajé. Ao analisar o impacto dessa histórica gravação, Stella mostra como a importância da música de Caymmi na carreira de Carmen foi muitas vezes minimizada pela imprensa da época. De todo modo, apesar do retumbante sucesso do samba O que é que a baiana tem?, incluído no filme Banana da terra (1939) em decisão que provocou a ira de compositores como David Nasser (1917 - 1980) e alfinetou o ego do então soberano Ary Barroso (1903 - 1964), Caymmi se sentiu desconfortável ao dar continuidade à sua carreira fonográfica na Odeon. É que a gravadora exigia, em contrato leonino, que o novato compositor - hábil intérprete e violonista - gravasse sucessos. Temeroso de estar pondo sua criação artística a serviço da indústria da música, Caymmi preferiu abrir mão de um contrato de longo prazo com a companhia para garantir sua liberdade. Tática que também usou com as emissoras de rádio sempre que se sentia tolhido em sua liberdade Por cantar bem e tocar um violão singular, o artista preferiu muitas vezes o conforto dos shows feitos em boates, mesmo sendo acusado pelos jornais de estar "se distanciando do povo". Além de traçar rico painel da música brasileira na época, o livro O que é que a baiana tem? - Dorival Caymmi na era do rádio expõe a integridade de Caymmi na condução de sua carreira nesse período de consolidação de sua obra e de seu jeito de ser. A obra relativamente curta do compositor - cerca de 120 músicas compostas em 94 anos de vida - é o maior atestado de que Dorival Caymmi soube caminhar em seu tempo próprio, fazendo valer seus princípios na selvagem era do rádio, ora dissecada no ótimo livro de Stella Caymmi.